sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Agostinho e o espelho de Alice

.
Esta 'brincadeira', "O Espelho e o Pé-de-Cabra" na versão original, data de 12 de Outubro de 2002. Após reler o texto, senti vontade de pegar nele e desenvolvê-lo um pouco mais. Torná-lo mais apetitoso para o leitor.


AGOSTINHO E O ESPELHO DE ALICE

Agostinho, piscando os seus olhinhos de rato sodomizado, olhou a superfície lisa e espelhada à sua frente na qual a sua imagem reflectida olhava para ele.

Aquela superfície que era e não era um espelho, como se verá.

Era um espelho na medida em que reflectia imagens mas não era um espelho, de acordo com os terríveis acontecimentos que iriam acontecer.

Era um espelho de grande dimensão e Agostinho comprara-o há uns anos num vidraceiro de Xabregas, por uns cobres valentes, apesar de se estar a cagar para espelhos, mas na altura vivia com uma gaja em casa, a Alice caolha, uma putéfia que sacara nas docas, e as gajas gostam de se ver ao espelho.

Queres mamada... compra um espelho!

A Alice caolha, um dia, acabara por basar, levando com ela um coelho branco de estimação e um baralho de cartas espanholas, pois arranjara um gajo com mais bago, mas o espelho ficara.


Agostinho fixou a sua imagem na superfície do dito.

O espelho, mais ou menos do tamanho de uma porta, estava fixo à parede do quarto com o bordo inferior muito perto do chão o que permitia a uma pessoa de estatura mediana ter nele uma imagem de corpo inteiro.

No fundo, era um espelho baril e Agostinho já se tinha habituado a ele.

Contudo havia algo de estranho na imagem reflectida pelo espelho que não era espelho.

Via-se a si próprio e o quarto onde estava.

Mas tinha a sensação de que a imagem que via no espelho tinha algo de errado.

Pôs-se a olhar atenta e fixamente.

Olhou o seu rosto gordo de labrego.

Era o rosto largo e generoso de um homem de vinte e oito anos.

Um rosto cheio, com maçãs rosadas que herdara do seu pai que tinha sido taberneiro e proxeneta em Alfama.

Os olhos azuis herdara-os da mãe, transmontana raiana, criada-de-servir em casa dos avós dele, donos de uma pequena quinta nos arredores de Lisboa, ali para as bandas de Oeiras, onde aliás todos tinham vivido depois de ele nascer fruto das aventuras nocturnas de seu pai no quarto da criadita então com apenas uns frescos e saborosos dezasseis anos e cheia de ingenuidade serrana face ao jovem belo e fogoso de dezoito anos, que fora o seu pai, ainda por cima filho dos patrões.

Assim ele nascera e os pais foram obrigados a casar porque a avó, mulher barbuda e de calibre, não admitia poucas-vergonhas em casa e com os garotos casados não havia motivo para falatórios.


Olhou-se de alto a baixo.

A roupa com que estava vestido era modesta, nunca fora de grandes luxos.

Umas calças de fazenda cinzentas a ficarem puídas nos joelhos, uma camisa azul aos quadrados com as mangas arregaçadas pelos antebraços, gravatas nem pensar, nunca usara, nem sabia fazer o nó.

Na cabeça usava um boné castanho de tecido inglês que herdara também do pai e que tinha seguramente mais de vinte anos.

Nos pés calçava botas de couro tipo 'bota alentejana'.

Sem dúvida fazia jus ao seu eterno ar de campónio!

Mexeu uma das mãos e viu a correspondente no espelho mover-se.

Estendeu a mão para tocar o espelho e a mão reflectida no espelho avançou sincronizada ao encontro da sua.

Viu os dedos tocarem-se quando os seus dedos tocaram a superfície do espelho.

O contacto foi frio como gelo gelado.

Não foi isso que o admirou.

Afinal os espelhos são feitos com vidro.

O que o deixou atónito e atemorizado foi que metade dos seus dedos desapareceram para além da superfície.

Puxou a mão bruscamente, assustado.

Pensou que os seus olhos o tivessem enganado.

Voltou, com muitas cautelas, a aproximar a mão da superfície do espelho e de novo tocou-lhe, ou melhor, tentou tocar-lhe.

Viu os dedos penetrarem a superfície do espelho e desaparecerem.

Retirou a mão rapidamente.

Não havia dúvida, acontecera mesmo!

Recuou aterrado, de olhos esbugalhados e pêlos do pescoço ouriçados, a olhar para o espelho.

Que fazer?!

O melhor era talvez destruir aquela coisa demoníaca.


E para isso saiu decidido do quarto, correu para a despensa e muniu-se de um valente pé-de-cabra.

Voltou ao quarto, chegou-se ao espelho e empunhando o pé-de-cabra com as duas mãos, levantou-o e desferiu uma pancada violenta no espelho, onde outro Agostinho realizava precisamente a mesma acção na direcção oposta...

Mas não se ouviu o característico som de vidros a partirem-se.

O pé-de-cabra penetrou a superfície do espelho, como se esta fosse líquida, com o impulso soltou-se das mãos de Agostinho e desapareceu sem que um som se ouvisse.

Agostinho sentou-se sobre a cama emudecido, terrificado, e sem saber o que fazer.

Ali ficou durante muito tempo, tentando perceber o que acontecera e o que poderia fazer para se desfazer do espelho e pôr termo aquela coisa horrenda.

Subitamente apercebeu-se de um movimento do lado do espelho e olhou na direcção daquele.

O pé-de-cabra, o seu pé-de-cabra, saia do espelho e vinha lançado a grande velocidade na sua direcção.

Bem tentou, mas... não conseguiu fugir a tempo de evitar ser atingido e levou com o ferro em cheio na cabeça caindo para trás a sangrar abundantemente e desmaiou tombando no chão.

Na superfície do espelho, vinda do outro lado, emergiu espreitando a cabeça de um ser de aspecto vagamente humano, olhar sinistro, cabeça essa cheia de ligaduras presas com largos adesivos.

O ser olhou Agostinho caído no chão, sorriu-se piscando os olhos e disse na sua língua incompreensível:

— Toma lá ó cabrão p'ra ver se gostas! Vai dar com o ferro nos cornos do teu pai!


Oeiras, Dezembro 2007
.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2007

recordações de um velho viajante das estrelas

.
Esta estória foi escrita em Dezembro de 1995. Ela reflecte o meu púbere interesse e o meu entusiasmo pela Ficção Científica - 'Antecipation' pour les français - e a minha paixão pela Filosofia. Os personagens fazem parte de algumas das minhas referências filosóficas.


RECORDAÇÕES DE UM VELHO VIAJANTE DAS ESTRELAS

Hoje, cada vez mais perto do fim da vida, a pele antes lisa e brilhante agora enrugada e flácida, os olhos esforçados começando a falhar, vergado pelo peso dos anos, cansado, velho viajante das estrelas, recordo com saudade, por vezes mesmo com um pouco de amargura, o tempo em que descer num qualquer planeta desconhecido era algo que eu fazia com um frémito de emoção a percorrer-me o corpo como se de um encontro de adolescente se tratasse.

A descida, por vezes violenta, em solos desconhecidos e traiçoeiros, a saída da nave encerrado no meu escafandro, simultaneamente prisão e protecção, felizmente para mim até hoje nunca esquife, o corpo a tremer, os primeiros movimentos, lentamente, tacteando, passo a passo, com grande cuidado, procurando identificar qualquer perigo mas apreciando também as visões maravilhosas que muitas vezes se desenrolavam diante dos meus olhos, padrões e movimentos inacreditáveis, cores fantasticamente inimagináveis, infernos imensos, fornalhas abrasadoras, autênticas fontes de vida cósmica.

A sensação grandiosa e assustadora, o privilégio, de estar a assistir ao nascimento de universos, a big-bangs, eternos recomeços da grande roda do existir, visões da eternidade, encontros com Ele.

Assim percorri desbravando durante uma vida inteira toda a Galáxia para que hoje os seus caminhos sejam conhecidos e seguros para os viajantes actuais, e para os milhões de colonos que saídos da Terra se espalharam pelos planetas mais promissores, novos mundos, novas índias e novas américas.

De entre todas as descidas que fiz ao longo da minha vida de explorador estelar recordo com prazer mas sempre com um gélido arrepio de estranheza pelo que teve de fantástico, de irreal, de surrealista, a descida que fiz em Hermes.

Ainda hoje me interrogo sobre o que verdadeiramente aconteceu, e que guardei para mim não tendo comunicado nada nos relatórios, até porque o Governo Terrestre desinteressou-se completamente em relação a Hermes não tendo efectuado nenhuma acção posterior para a sua colonização, ficando o seu segredo guardado para sempre.

Não se sabia nada a respeito desse planeta pois um manto permanente de nuvens impedia a observação visual directa e os seus forte campos magnéticos causavam enormes interferências nos instrumentos das sondas pelo que a solução era efectuar uma descida directa no planeta.

Foi essa a ordem que recebi quando me encontrava a meio caminho de Aldebaran e assim dirigi-me rapidamente para Hermes.

Posta a nave em órbita estacionária, instalei-me no módulo de descida e accionei os comandos.

O computador entrou em funcionamento e o módulo soltou-se entrando em queda livre em direcção à superfície ainda desconhecida de Hermes.

As nuvens de vapor sulfuroso envolviam o módulo e tornavam-se cada vez mais densas à medida que vertiginosamente descia com a estranha sensação de que nesta descida havia algo que a ia tornar bastante diferente das outras e que eu iria ficar para sempre marcado.

Contudo, não era uma sensação de tragédia mas antes uma sensação de ir penetrar noutra dimensão existencial.

Noutro universo.

Os travões foram automaticamente accionados pelos sistemas de navegação e o módulo pousou suavemente na superfície de Hermes, não sem antes se ter inclinado ligeiramente a bombordo fruto de uma provável cedência do terreno sob o peso das sapatas de aterragem.

Feitas e registadas as primeiras análises e medições à atmosfera e ao solo pelos sistemas automáticos chegou a altura de sair.

Abri a escotilha pela qual nuvens de vapor voltearam e penetraram no módulo e sai para o exterior.

O vapor amarelo formava um nevoeiro cerrado à minha volta envolvendo-me como uma estranha mortalha.

Decidi em que direcção iria avançar após analisar as imagens sobre a topografia do terreno em que me encontrava.

Uma cadeia de altas montanhas a poucos quilómetros, destacada da imensa planície pedregosa despertou o meu interesse e foi nessa direcção que resolvi avançar.

Guiava-me por instrumentos pois a visibilidade era praticamente nula.

Ao chegar às faldas da montanha piramidal deparei com um túnel imenso que penetrava profundamente na montanha e afoitamente entrei pelo túnel pois este certamente iria conduzir-me a algum lado e eu estava cheio de curiosidade.

A iluminação do meu capacete permitia-me avançar, e os instrumentos iam-me fornecendo informações constantes.

A minha surpresa começou com a diminuição da densidade da névoa à medida que eu avançava pelo túnel e com as informações dos instrumentos que me indicavam que a composição da atmosfera se ia também modificando assemelhando-se muito à atmosfera da Terra numa região temperada, sendo assim perfeitamente respirável para mim.

O receio e a cautela contudo fizeram com que eu conservasse o meu escafandro vestido.

Tinha já avançado bastante pelo túnel quando este acabou bruscamente e a intensa luz do sol local me envolveu e momentaneamente me cegou.

Quando consegui de novo ver, o meu espanto foi indescritível.

A imagem que me rodeava parecia uma impossibilidade.

Encontrava-me num jardim verdejante pleno de relva e árvores floridas como se estivesse de novo na Terra.

Mas eu sabia que estava em Hermes e aquilo tinha que ter uma explicação.

Talvez a montanha envolvente provocasse uma bolsa atmosférica do tipo terrestre em que espécies vegetais do mesmo género se tivessem desenvolvido num estranho processo evolutivo e selectivo paralelo, a milhares de anos-luz do planeta azul.

A verdade é que eu estava ali e era uma testemunha privilegiada da existência daquele local idílico, que certamente algumas pessoas mais crentes não hesitariam em considerar o Céu.

Percebendo que não existia qualquer perigo despi o meu escafandro e resolvi explorar aquele estranho, impossível jardim, aquele verdadeiro éden.

Assim fui caminhando ao longo de um ribeiro que suavemente murmurava por entre moitas verdejantes e margens de deliciosa relva, envolvido em nuvens esvoaçantes de belamente coloridas e grandes borboletas como eu nunca imaginara que pudessem existir.

Em redor a paisagem pouco mudava, árvores por todo o lado proporcionavam magníficas sombras.

Foi com uma grande surpresa, que me fez de súbito estacar, que me apercebi que ao longe e na minha direcção vinha uma figura indubitavelmente humana.

Um homem de aspecto idoso.

Ligeiramente curvado para a frente, de mãos atrás das costas, vestido com roupas como eu nunca tinha visto mas que me recordavam vagamente imagens dos séculos XIX e XX aprendidas nos livros de história e em alguns velhos filmes de cinema com histórias passadas nesses séculos, caminhava calmamente, com ar meditativo.


Quando chegou ao pé de mim parou e fixou-me com um olhar penetrante e interrogativo.

Em dinamarquês, eu tinha comigo o meu tradutor universal AppleTranslator, cumprimentou-me apresentando-se:

— Bom dia senhor, permita-me que me apresente. Søren Aabye Kierkeggard. Sabei que Deus existe e está em toda a parte. A prova é que nos encontramos neste local que está em todo o lado e em parte nenhuma. Só lamento não ter ainda encontrado a minha muito amada Regina Olsen, apesar do que tenho caminhado.

E afastou-se, andando ao longo do regato e desaparecendo ao longe.

Eu, pela minha parte, fiquei sem saber o que pensar.

Que raio de sítio seria aquele? Existiria de facto? Pelo menos eu tinha a certeza que podia nomeá-lo: Hermes, o mensageiro.

Sentia a sua essência envolver-me.

Vencendo a imobilidade que o espanto causara no meu corpo retomei a marcha.

Alguns passos andados eis que novo vulto se aproxima de mim.

E de novo, desta feita em alemão, apresenta-se:

— Bom dia senhor, sou Martin Heidegger. Sabei que estou profundamente preocupado com o Dasein, o “ser-aí”. E ainda não o encontrei, nem mesmo aqui. Esse lugar onde o ser se desenvolve e pode ser atingido. A aparência é ocultamento.

E afastou-se, não sem antes me ter recomendado que meditasse bastante sobre a metafísica.

Continuei a caminhar completamente estupefacto, e vi sentado na relva à sombra de uma árvore um homem que não precisou de se apresentar pois reconheci-o facilmente pelo seu ar grave, extasiado, de contemplação divina.

Era Immanuel Kant.

Cumprimentei-o com um aceno de cabeça.

Num alemão perfeito dirigiu-me a palavra:

— Estou convencido que a electricidade causa uma doença generalizada nos gatos. E não se atreva a vir-me falar de Lampe!

Ao afastar-me, ainda o ouvi murmurar:

— ... o céu estrelado por cima de mim e a lei moral em mim.

Andei um pouco mais, inebriado que me sentia.

Sentia-me como num sonho.

Olhava à volta, via com nitidez as ervas, o regato, as árvores, as frescas sombras, mas...

Aqueles personagens pareciam-me absolutamente reais, contudo...

— Absolutamente! Diz muito bem! — trovejou outra voz em alemão, atrás de mim.

Sobressaltei-me, voltei-me de um pulo e deparei com Hegel, pois assim se identificou:

— Georg Wilhelm Friedrich Hegel, qual é o espanto? Já que vos atrevestes a devir até aqui, ficai sabendo que tudo o que é real é racional e tudo o que é racional é real! — e, virando-se bruscamente, afastou-se em largas passadas.

Eu, fiquei literalmente a olhar o Infinito!

Depois de todos estes encontros, com a cabeça a rodopiar como uma nave caída num vórtice, rapidamente regressei pelo mesmo caminho à minha nave partindo para outro lugar e não tendo até hoje regressado a Hermes.

Será que tudo aquilo foi real ou terei eu sido vítima de alguma alucinação?

E tendo sido real como me pareceu, que local seria aquele?

Onde está a Prova Ontológica?

Ainda hoje não sei a resposta a nenhuma das questões, mas fiquei convencido duma coisa:

A EXISTÊNCIA PRECEDE A ESSÊNCIA!


Oeiras, Dezembro 1995 .

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

OVNI na Fábrica

.
Recebemos hoje, via e-mail, uma comunicação/convite que recomendamos a todos aqueles que se interessam por boa literatura.




APRESENTAÇÃO NA FÁBRICA


Na próxima quinta-feira 20 de Dezembro, a OVNI fará uma festa de apresentação na Fábrica de Braço de Prata, a partir das 21.30h.

Nesta longa noite de solstício, haverá avistamentos, livros, música e imagem.

Vamos aproveitar para falar do último livro, O ALIENISTA E OUTRAS RARIDADES, uma selecção de contos de Machado de Assis levada a cabo por João Camilo, que também assina o prefácio. Duzentas e trinta páginas com alguns dos melhores contos do mestre brasileiro. E, claro, falaremos de todos os outros livros já publicados, dos autores e do projecto OVNI.

Fábrica de Braço de Prata

Blog da Festa

OVNI

Divulguem!
.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

coleccionava singularidades

.
Caros Leitores, esta estória, escrita em 22 NOV 2001, tem um fundo profundamente autobiográfico, como notarão aqueles que me conhecem bem. É um pedaço, uma partícula, um instante de mim.


COLECCCIONAVA SINGULARIDADES

Coleccionava singularidades. Começara ainda miúdo com um pequeno fóssil de turritela terebralis (A) que encontrara numa escarpa rochosa da praia onde passava as quentes e doces férias de verão.

Apanhou-o do chão com os seus pequenos dedos, rolou-o e observou-o com atenção fascinada. Uma pequena rosca de rocha dura. Um milhão de anos na ponta dos seus dedos juvenis. Um frémito percorreu o seu corpo.

Um tiranossaurus rex rugiu ao longe. Apertou a pequena rocha fusiforme na palma da mão e forçou as pernas a moverem-se. Era difícil mover os pés, mergulhados no lodo jurássico. Mas conseguiu. E caminhou seguro sobre a areia quente da praia, sob o sol escaldante e inclemente, até ao chapéu de sol onde a família estava abancada.

Quando as férias terminaram levou para casa aquele objecto precioso, aquele tesouro singular, e guardou-o bem guardado no seu quarto. O tempo passou e regularmente pegava no objecto e observava-o com paixão e fascínio, pensando "onde este estava há mais e vou recolhê-los!"

E recolheu. Mais turritelas. Não só naquele local mas em muitos outros onde as encontrava. Não só turritelas mas tudo quanto fosse fóssil, pedra curiosa, cristal, pedaço de madeira, objecto curioso, singularidade...

Por todo o lado, em casa, no sótão, na arrecadação, nas gavetas, sobre os móveis, em caixas velhas de cartão, aqui e ali, havia objectos da sua colecção. Mas sentia-a sempre incompleta. Não conseguia considerá-la terminada, completa e finita. Sentia que 'cabia sempre mais um'. Havia sempre mais um objecto a acrescentar. Aparecia. Encontrava-o. Achava-o. Não o podia desperdiçar e deixar a colecção incompleta! Assim, juntava, juntava, juntava...

O miúdo tinha crescido. Fizera-se homem adulto. E a colecção crescera desmesuradamente. A maioria dos objectos, para os outros, era apenas 'tralha'. Não tinham valor nenhum. Quanto muito haveria um ou outro mais 'giro' ou 'curioso'. Apenas isso. Mas para ele era bem diferente. Eram valiosíssimos. Eram a Sua Colecção! E valiam pela singularidade. Não se conseguia desfazer deles, de nenhum deles. Não conseguia sequer imaginar-se sem eles.

Sonhara um dia organizá-los numa espécie de mini-museu caseiro. Organizados e dispostos em belas prateleiras de vidro, iluminados com arte e com pequenas etiquetas identificadoras. Mas via cada vez mais longínquo esse sonho. Razões económicas, já se vê. O que não o impedia de continuar a coleccionar. A colecção infinita.

Por vezes olhava um ou outro objecto da sua colecção, que descobria ao abrir uma gaveta ou a porta de um móvel. Uma velha lupa de vidro da qual sobrara o aro e a lente e desaparecera a pega ou um pequeno canivete suíço ao qual faltava o palito, a sua primeira máquina fotográfica para a qual já não havia rolos, um dente de cavalo achado na praia e metido numa caixinha plástica com um algodão no fundo, a ocular da máquina fotográfica que se avariara, desmontara e 'lixara', o passe de estudante da CP de Oeiras a Cascais com o velho bilhete mensal de 47$50, uma lente de óculos com função de godé suja de gouache, uma lanterna que há anos não funcionava, um isqueiro a gasolina trucidado por um carro e todo amachucado, uma pequena válvula de combustível de um avião T7, parafusos, porcas, pedras, conchas, pedaços disto, pedaços daquilo, pedaços de tudo e pedaços de nada, porções, completudes, singularidades..., e pensava "para que quero eu esta merda?" Mas não conseguia deitar o objecto fora. Sentia-o como único no cosmos. Podia haver muitos parecidos, mas nenhum rigorosamente igual. O que o tornava singular. E lhe dava um valor inestimável. E lá voltava o objecto para a gaveta ou caixa de onde tinha saído.

Chegou a pensar em organizar os objectos em colecções temáticas: moedas, selos, postais, fósseis, fotografias, rochas, búzios e conchas, desenhos, navalhas, livros, miniaturas, isqueiros, óculos, canetas... Uma Colecção de Colecções! Mas não funcionou. Apareciam sempre novos objectos a abrir novas rubricas e outros que 'voavam' de rubrica em rubrica. A carteira profissional da avó ou a certidão de nascimento do pai entravam na rubrica 'documentos', na rubrica 'história', na 'família' ou em 'testemunhos do período fascista'? Que confusão! Assim continuou, como sempre. A juntar. Juntando, juntando, juntando...

Coleccionava singularidades.


(A) - TURRITELLA - PALEONT. Foi Lamarck quem, pela 1.ª vez, em 1799, designou este gén. de animais marinhos por este nome. A concha é cónica, alongada, com muitas espiras bem individualizadas; ornamentação formada por cordões longitudinais, tornando-se granulosa nos ambientes salobres; durante o crescimento de cada indivíduo os caracteres ornamentais modificam-se; este facto permite reconstruir as afinidades inter-específicas. Abertura holóstoma, oval ou arredondada. Os animais do gén. T. apareceram no Cretácico, tiveram a maior expansão no Terciário e chegaram à actualidade, sendo vulgares nas praias portuguesas. Os fósseis são extraordinariamente abundantes em certos sedimentos miocénicos de Portugal, apresentando formas muito grandes. in Enciclopédia Luso-Brasileira de Cultura, Verbo, V. 18, p.277
.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2007

porque este mundo está cheio de mentecaptos...

.
Queridos amigos leitores, alguns de vós receberam já o texto abaixo, integrado no último mail que vos enviei. Não valerá a pena lerem-no, porque lhe conhecem o teor.
Para os outros, os que chegam agora, é uma novidade. Tomo a iniciativa de o integrar aqui e dar a ler, ao jeito de desculpa e justificação pelo facto desagradável de me ter visto forçado a activar a moderação de comentários neste espaço.
Uma atitude que nós, bloggers, nunca gostamos de ter que tomar, porque nos é agradável e importante a resposta que os nossos leitores nos dão através dos comentários que deixam ficar.
A moderação não significa que não possam comentar. Apenas acontece que os vossos comentários me são enviados por mail e apenas depois de eu os ter aprovado é que eles aparecem aqui no blog. Por isso, comentem à vontade!

Fica então o texto, que certamente será fácil de entender:

Caro(a)

Aproveito este mail para referir dois assuntos. O primeiro é para pedir desculpa pelo facto de ter activado a moderação de comentários.
Apareceram alguns comentários de um 'velho conhecido' meu (da blogosfera) que anda há anos apostado em insultar-me nos meus blogs e outros onde participo. Dá pelo nick/assinatura de "Major Silvério" e o seu único intento é importunar-me, incomodando, por extenso, os que me visitam e nada têm a ver com a 'guerra' que ele me move e cuja motivação desconheço.

A segunda questão também diz respeito aos comentários. Não se acanhem de os fazer. Positivos ou não, eles são importantes para mim e serão sempre bem recebidos.
Para quem não sabe como funciona, é só clicar na palavra "comentários" que aparece no fim de cada post e escrever na caixa da janela que se abre.

BOM NATAL !!
.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

som madrugador

.
esta estória foi reescrita, com poucas modificações, a partir dum original datado de 11 FEV 2005. É um exercício de non-sense e o epílogo... bem, esse fica ao critério do leitor.


SOM MADRUGADOR

Eram aproximadamente 6 h. da madrugada quando um som estrídulo e obsceno me despertou.

Acordei, transpirado e pensando que som seria aquele, tomando em simultâneo consciência de como a essência da corrupção dos mártires era premente, rápida, e ainda da forte, pungente, dor que sentia no joelho esquerdo, um pouco abaixo do menisco.

Levantei-me estremunhado e abri a boca como um cachucho esquerdista fora de água.

Olhei em torno de mim para a escuridão penumbrosa e clara, que me envolvia como um santo sudário sujo de cagadelas de mosca drosófila.

Arrotei.

É a primeira coisa que faço habitualmente quando acordo, já lá vão 43 anos.

Arroto, soltando estrepitantemente aqueles nocturnos e comprimidos gases, que o meu estômago guarda ciosamente enquanto durmo, como se de um tesouro se tratasse.

Tenho um estômago-cadela.

Por vezes, acompanho estes arrotos com puns.

Dever-lhes-ia, ao invés, chamar traques, ou mesmo peidos, visto que se caracterizam pelo rasgado estrondo que produzem, capaz de acordar do sono eterno um cadáver surdo sem orelhas nem ouvidos.

Pelo menos o meu gato acorda sempre, e uiva.

É um gato com a mania que é lobo.

Já o levei a um psico-veterinário, mas o psiquiatra suicidou-se a meio duma sessão de terapia, saltando da janela do 81º andar.

Ao que parece, porque resolveu sair e voltar a entrar no gabinete mascarado com uma pele de cordeiro, vá-se lá saber porquê, e o gato terá convencido o sujeito de que ele era o cordeiro de Deus e que tinha asinhas nas costas e podia voar.

Voou, voou, em voo picado direitinho aos paralelepípedos!

Olhei em volta e pensei de novo que som teria sido aquele que me despertara do merecido descanso deste pobre pecador.

Busquei no fundo da minha memória auditiva, mas nada se acercava da superfície, nada emergia, nada que me desse uma pista que me permitisse identificar o som.

Caguei no assunto.

Assim como assim, estava acordado e já nada havia a fazer.

Não consigo readormecer após acordar.

Tenho no mínimo que deixar passar umas boas 22 horas até que o sono volte de novo.

O melhor era aproveitar o dia.

Ou noite, não sabia que horas eram e não me apetecia ir ver ao relógio que tenho dentro da arca congeladora por cima da garrafeira.

Fui à casa de banho e tratei da minha higiene.

Rapei a barba;

Lavei os olhos, tirando cuidadosamente as ramelas, juntando-as num montinho, amiguinhas coladinhas umas às outras, sobre o manípulo da torneira;

Meti três vezes o mínimo nas narinas para tirar os burriés, que também juntei num montinho no manípulo da outra torneira;

Com uma pequena pinça arranquei os pêlos que saíam do nariz e das orelhas, vieram-me as lágrimas aos olhos, é bom chorar pela manhã;

Lavei os quatro dentes que ainda me sobram do antigamente;

Coloquei as próteses dentárias, que dormiam docemente mergulhadas no seu copinho de água com pastilhas desinfectantes;

Sentei-me no bidé e lavei as partes, pois não me apetecia tomar banho de chuveiro;

Enxuguei com a toalha manchada de humidade tudo o que ainda estava molhado, e voltei para o quarto para me vestir.

Vesti-me rapidamente.

Era verão e não havia muita roupa para vestir.

Lembrei-me de novo do som que me tinha acordado.

Esqueci-o outra vez.

Tinha mais que fazer.

Decidi sair de casa.

Dirigi-me à porta, abri-a e saí para o patamar.

Parei frente à porta do elevador e chamei-o, com um potente grito:

— ELEVADOOOOOR!!

O gajo demorou um pouco a aparecer.

A porta abriu-se à minha frente e dela saiu um enorme e possante negro que olhou para mim e disse:

— Chamou, chefe?

— Chamei, chamei! E 'tava a ver que nunca mais aparecias!

O negro acocorou-se e subi-lhe para as cavalitas, segurando-me com força à sua carapinha suja e encardida.

— Leva-me ao 54º andar.

O negro lançou-se em enormes passadas pelos degraus acima, estávamos no 23º, agarrando-se com as mãos aos corrimãos que ladeavam os degraus.

Chegámos.

Desci para o chão e o negro abriu a porta do elevador e desapareceu a acorrer a outra chamada.

Olhei à volta do patamar.

15 portas igualzinhas, em metal cinzento, alinhavam-se pelas paredes fora, tal como no meu andar.

Dirigi-me à 9ª a contar da esquerda e pressionei o botão da campainha.

— Quem é? — disse uma voz feminina e ensonada do interior.

— É o caralho que ta foda! — respondi em tom grosseiro — Abre lá a merda da porta, porra!

— Ai és tu! — identificou-me facilmente, claro.

Ouvi os mecanismos de segurança praguejarem e roncarem quando ela os passou a estado off.

A porta abriu-se e ela surgiu à minha frente em todo o esplendor dos seus 46 anos.

Estava nua, e as suas glabras escamas rebrilhavam à luz difusa do patamar.

Fez-me sinal para que entrasse, o que fiz de imediato.

Fechou a porta atrás de mim e disse:

— Então o que te traz por cá, romeiro, a estas horas da madrugada? Levantei-me agora mesmo.

Olhei os seus olhos vesgos, amarelos como limão, e respondi:

— Um filho da puta dum som! Não o ouviste?!

— Não, não ouvi nada, até teres tocado à campainha. Mas... já que aqui estás, aproveita e toma o pequeno-almoço comigo — respondeu persuasiva.

— Estás sozinha? — perguntei-lhe com ar de quem já sabia a resposta.

— Como de costume, meu tonto! — disse com um sorrizinho brejeiro desdentado.

Acompanhei-a até à cozinha, seguindo-a e observando lascivamente o seu intrépido traseiro, poderoso como uma betoneira.

O cheiro do café acabado de fazer penetrou-me as narinas, acabadinhas de depilar, e encheu-me de desejo.

— Queres uma torrada? — questionou, apesar de conhecer de antemão qual seria a minha resposta.

— Quero 26 torradas, se não te der muito trabalho. — disse eu, súbita e inexplicavelmente um pouco acanhado.

— ... T'balho nenhum!

Pôs as torradas, uma travessa com 70 cm de ponta a ponta cheia de torradas pretas, o bidão de café e duas malgas sobre a mesa e sentou-se ao pé de mim.

— Conta-me lá essa história do som. — disse-me, ao mesmo tempo que esfregava uma torrada cheia de manteiga rançosa derretida na orelha direita, pingando o ombro nu, e metia o queixo na malga de café fervente e fumegante.

— Oh pá, estava a dormir e acordei por causa de um som qualquer que não sei o que era. Como já não conseguiria dormir, levantei-me, lavei-me, vesti-me, subi e estou aqui. É tudo. The end.

— Que raio de coisa...! — exclamou franzindo o sobrolho.

Estávamos neste construtivo debate, esfregando as torradas quentinhas e amanteigadas nas nossas orelhas e mergulhando os nossos queixos no café negro e fervente, quando atrás de nós, aparentemente vindo da sala, se ouviu um som horripilante, estridente, como de metal contra metal a chiar.

Olhámo-nos atónitos e levantámo-nos assustados.

Vi-a tremer como uma gelatina.


— CUM CAMANDRO! — proferimos em uníssono.

Dirigimo-nos pé ante pé, o mais silenciosamente que se consegue sobre joelhos bambos, na direcção da porta da sala para espreitarmos.

Lentamente, movemo-nos, ela atrás de mim, nas minhas costas, a proteger o seu corpo com o meu e a espreitar sobre o meu ombro.

Não chegámos à porta da sala.

Nem sequer a meio do caminho.


Oeiras, Dezembro 2007
.

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A aldeia das mulheres marrecas

.
A ALDEIA DAS MULHERES MARRECAS

Um estranho anátema acontecia naquela luminosa região, formada por doces e suaves colinas cobertas de chaparros cujos grossos e rugosos troncos se erigiam fálicos numa ânsia de penetração funda nas copas que lascivas os sobrepujavam, colinas casadas por ligeiros vales serpenteantes onde a luz se entontecia e inebriada vacilava como uma louca bacante entregue à devassidão.

Os povoados dispersavam a conveniente distância uns dos outros, não fosse a vizinhança demasiado próxima contaminar virulentamente a tradição onírica de cada um.

Vista do alto, onde moram os deuses e as deusas, parecia um imenso tapetinho verde sarapintado aqui e acoli de manchazinhas brancas adossadas por outras cor de tijolo.

Aquele panorama podia ser em qualquer parte do mundo. Mas aquele lugarejo, aquela aldeola, que nem presidente de junta tinha porque o eleito residia agora no cemitério e ainda não tinha sido substituído, ... calma que não é para fazer é para ir fazendo..., aquele povoado aldeão sofria de um sinistro réprobo.

Num distante passado já acontecido em que os ursos, os lobos e os vates ainda rondavam os montes ao derredor, ocorrera que, vá-se lá saber porquê, os homens machos do burgo apenas escolhiam as mulheres fêmeas mais dotadas de enormes e poderosas glândulas amamentadoras.

Talvez algum feiticeiro louco os tivesse convencido que essas eram as mais adequadas para a procriação, pela tremenda capacidade de produzir leite para amamentar as crias e garantir o futuro.

Talvez tivesse apenas a ver com uma questão estética. Talvez fosse apenas uma questão freudiana...

Fosse o que fosse, mulher de mamocas pequenas estava condenada a não ter parceiro sexual e sobretudo descendência.

É claro que a implacável lei da selecção natural, que o Darwin não dorme em serviço, não se fez rogada e impôs a sua acção.

Assim, ao longo de centenas de anos, as mulheres de seios minúsculos foram rareando cada vez mais e cada vez maior era o número de luxuriosas fêmeas de grandes, enormes, gigantescas tetas. Que não pararam de crescer porque os machos as desejavam cada vez maiores.

Com o tempo, claro que o povoado ficou reduzido apenas a mulheres de grandes mamas que fariam inveja à Dolly Parton. Muitas eram tão grandes, que lhes davam pelos joelhos.

A gravidade, também ela poderosa e implacável, não deixou de promover o seu efeito.

De tão grandes e pesadas que eram as mamas, que elas eram obrigadas a inclinar-se para a frente, chegando algumas mesmo a desequilibrar-se e a cair de borco no chão, ganhando horríveis equimoses.

Assim, as mulheres daquela aldeia, mercê da excêntrica inclinação para a frente, começaram a ganhar enormes bossas dorsais.

Não se via uma mulher, já nasciam assim o que complicava o parto, que não tivesse as mamas pelas coxas e uma gigantesca geba no dorso. Aliás, muito prática para transportar bilhas com água e cestas de fruta.

E por isto aquela aldeia era conhecida nos arredores p'la aldeia das mulheres marrecas!


Oeiras, Novembro de 2007
.

quinta-feira, 22 de novembro de 2007

enlace

.
Um registo um pouco diferente...


ENLACE

Era uma mula maravilhosa a minha mula a minha Graciete. Grande e possante forte e grossa. Pujante trabalhadora incansável. Quadris de fazer inveja. Tinha-a há seis anos, desde que a comprara para a usar nas lides do campo, e nunca me arrependera da esdrúxula maquia que dera por ela ao cigano Manel de olhar enviesado que ma vendera na feira do gado.
Mas havia qualquer coisa no seu olhar que me perturbava a ponto de não me deixar dormir sossegado à noite. Os modos como ela olhava para mim desde há uns tempos para cá deixavam-me com a cabeça às voltas e os ouvidos a buzinar.

Eram infinitas as horas que eu passava à espera de adormecer, com o pensamento naquele olhar lascivo que me despia de alto a baixo todos os dias pelas 6 h. da madrugada, quando a ia buscar ao estábulo para a atrelar à carroça na qual eu transportava as hortaliças que tinha colhido para as levar ao mercado, ou as alfaias para o campo onde eu passava todo o santo dia a vergar o aço em busca do meu sustento.

Foram muitas as vezes em que eu cansado da puta da labuta que esta vida não chega a netos, de pés fincados nos grossos torrões da terra lavrada, enxada na mão esboroada, com o incómodo mosquedo a voltear e a zunir em torno de mim, parei para descansar um pouco tirando o lenço encardido do bolso das calças para limpar o suor da testa e do pescoço, e olhei na direcção dela, da minha Graciete, descansada sob o chaparro à sombra atrelada ao carro, e a surpreendi a olhar-me obscena com aqueles olhos gigantes como bolas de snooker, daquelas brancas do snooker da tasca do Amadeu, olhos que ameaçavam comer-me. Que gritavam aos quatro ventos, ou oito vento sei lá, que me queriam comer!
Eu estremecia ante aquele olhar e rapidamente desviava os olhos noutra direcção qualquer. Às vezes lá para o alto, para uma ou outra cegonha, ou até mesmo uma águia, que teimavam em recortar o céu. Mas a pua na minha nuca não me enganava e continuava a sentir aquele olhar como uma farpa de aço cravada no meu dorso.

Comecei a acreditar que a mula me desejava. Apenas isso podia explicar o que eu sentia. Ela desejava-me como só uma mula pode desejar um macho.
E cada vez piores eram as minhas noites deitado no catre no meu casebre, na escuridão a pensar na minha mula a pensar naqueles olhos... até que um dia, senti como que uma ordem vinda de dentro que me gritava que eu tinha que pôr termo àquilo!

Eram umas quatro da manhã acordei alagado em suor com o entre-pernas todo molhado e pensamentos confusos na cabeça.
Tremia, sem perceber porquê, porque era Verão e não estava frio. Levantei-me com os joelhos bambos e de imediato o olhar da minha mula surgiu à minha frente. Vi os seus enormes e redondos olhos fixarem-me da parede encardida do meu quarto. Sentia-me envolto numa espécie de nevoeiro húmido e espesso. E soube logo o que tinha que fazer.

Vesti o meu melhor fato aquele a que o povo chama domingueiro sem sequer me lavar. Fato que se resumia a umas calças de fazenda cinzentas meio surradas e com um remendo nas nalgas um casaco castanho que herdei do meu irmão que morreu no Ultramar na Guiné uma camisa branca de popelina que comprei quando fui há uns anos à Feira de Castro e as botas cardadas de todos os dias que ensebei é claro.
Fui ao armário da despensa buscar a caçadeira que o meu pai me tinha deixado de herança enfiei-lhe dois cartuchos fechei-a e sai de casa, dirigindo-me em passos largos e decididos para o estábulo. Tinha que ser!

O dia raiava estava fresco e ainda se via a luz da Lua assomar por trás do montado. Abri a porta do estábulo decidido.
Ela ali estava a dormir descansada, claro. Mas assim que ouviu o ranger da porta olhou-me com ar espantado, aquele olhar de quem não acredita nas horas.
Olhou-me longamente, incrédula, por me ver ali tão cedo. As mulas têm um apurado sentido das horas, dizem.
De súbito reparou na arma que eu transportava na mão e estremeceu. Todo o seu corpo maciço foi possuído pelo demónio da tremura. Creio que adivinhou ou pressentiu o que ia acontecer.

Relinchou docemente duma forma que me revolveu as partes baixas e olhou-me fixamente com aquele seu olhar de todos os dias mas desta vez mais intenso.
Tentei não a olhar durante muito tempo, sobretudo nos olhos. Eu sabia como isso me podia trair. Todo o matador o sabe. Era apontar e pum!
Expedito, levantei a caçadeira e apoiei-a no ombro. Respirei fundo, expirei e retive o ar durante uns instantes, avos de segundo, ao longo dos quais cai no erro parvo de olhar os seus olhos, as suas pupilas negras fixas nas minhas. Erro de principiante.
Os seus olhos fixavam os meus com um amor e uma paixão de tal modo arrebatadora, avassaladora, que senti o ar faltar-me como se tivesse levado com uma marreta no estômago! Lentamente o meu dedo moveu-se para pressionar o gatilho...
Os meus olhos continuavam fixados nos seus que continuavam fixados nos meus...
Os seus olhos...

Estamos casados há doze anos e temos três rebentos, uma bonita mula e dois rijos machos.


Oeiras, Novembro 2007
.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

primeiro INSTANTE

.
Não são apenas os deuses que devem estar loucos...
Também eu pareço não escapar ao tropel do ensandecer. Que outra justificação poderá existir para que eu junte aos meus sete blogs, mais UM ?!
Devo ter enlouquecido pela certa !!

Na verdade, a razão é simples.
Necessito de um blog para publicação exclusivamente literária, isto é, para publicar os meus contos, estórias, memórias e ficções. E, já agora, os devaneios e as alucinações, balouços pelos mares do escrevinhar, gatafunhar e rabiscar. Os meus instantes de esbracejar bramido e agitado, de anacoreta perdido em mar encapelado, náufrago dominado pelo temor e terror de se afogar...

Tenho já alguns blogs nos quais vou publicando algumas coisas. Mas são espaços, apesar de 'temáticos', muito eclécticos.
Nos blogs dedicados a VILA REAL, a ALCÁCER DO SAL e a OEIRAS, p.ex., publico, além de memórias da minha passagem por estes lugares, não só textos mas também fotografias, desenhos, documentos vários, enfim, tudo o que possa estar relacionado com essas localidades.
O blog LENDAS TECNOLÓGICAS é literário, é certo, mas está encerrado. Finito. Corresponde a um projecto de livro que nunca viu a luz do dia, provavelmente nunca verá, e que se cristalizou sob a forma de blog. Não faria sentido acrescentar-lhe mais nada. É ponto final.
Por seu turno, o CARACOL CAROLAS é um blog generalista, "tudo ao molho e fé em Deus", sobre o qual costumo dizer que vale tudo menos tirar olhos... Nele tenho imensos textos dispersos, mas a sua consulta e leitura torna-se difícil, precisamente devido à enorme profusão de material de toda a natureza e feitio no seio do qual se encontram.
Os restantes, OLHARAPO DE OEIRAS e AI PORTUCALE são apenas divertimento e nem merecem grande menção neste contexto.

Tenho muito material por cá, de toda a ordem, pronto para publicação, sem contar com aquele que vou preparando e desenvolvendo consoante o tempo disponível que vou arranjando. Material que não se enquadra em nenhum dos blogs anteriormente citados.
Pareceu-me que só me restava uma solução. Criar mais um blog, este exclusivamente destinado à publicação do que tenho produzido, do que estou a produzir e do que espero ainda vir a escrever.

E assim, nasceu o

INSTANTES

Para inaugurar este novo espaço, começo com um curto conto que se encontra publicado na colectânea UM MAR DE CONTOS editado pela LULU, resultante do Concurso de Contos Junho-Julho 2007 do site ORA VEJAMOS...
Espero que vos agrade.


VENTO E O SONHO DOS ADOLESCENTES

O vento agitava suavemente as folhas das árvores e dos arbustos, provocando um doce murmurar na paisagem. Ao longo da negra estrada e paralelo a esta saracoteava um muro baixo pintado de branco com estranhos grafittis monocromáticos de aspecto paramilitar. Implantadas como gigantescas aranhas na ainda assim bela e imensa planície verde eram visíveis ao longe as rampas de lançamento do espaçoporto onde chegavam e de onde partiam para o espaço cósmico naves de todos os tipos. Naves de transporte de pessoas e de cargas, naves de passeio, naves de exploradores, naves militares de destinos secretos, enfim naves de todas as formas e feitios, imensas e brilhantes como sóis.

Era o que observavam os dois rapazes, amigos e colegas de escola, ao lado um do outro, deitados de bruços no alto de um pequeno morro. Um deles, morador na cidade, tinha ido passar as férias a casa do outro que habitava na pequena vila perto do espaçoporto. Este tinha-o desafiado para irem até lá para verem as naves partirem e chegarem, o que era um espectáculo fabuloso e que ele nunca tinha visto ao vivo mas com o qual tinha sonhado muitas noites.

Sonhava que era um garboso e valente comandante de uma nave militar de combate e que todos os dias tinha missões no espaço exterior, onde vivia as mais arriscadas aventuras, regressando sempre à Terra, aterrando a sua nave para ser reparada e passando o resto do dia contando aos amigos e amigas, sobretudo às amigas, as suas aventuras e ansiando por regressar ao espaço e enfrentar audaz o perigo. Enfim, sonhos de um jovem adolescente. Partilhava este sonho com o amigo. E muitas das suas brincadeiras e jogos giravam em torno desse tema. Tinham mesmo formado um clube a que, pomposamente, chamavam Clube Apollo XXI do qual eram os únicos sócios. Ora, pois se para ser sócio, tinham posto como condicionante que os candidatos soubessem de cor os nomes, as moradas e os números de telefone de todos os astronautas e os nomes, os pesos, as medidas e as velocidades de todas as naves da história espacial humana!

De tempos a tempos uma imensa nave rugidora surgia do alto, primeiro silenciosa mosquinha negra contra o azul do céu, depois troante crescendo agigantando-se, que suavemente pousava numa daquelas plataformas da esperança. Numa qualquer outra rampa, em alternância, o processo era inverso e era uma que partia. Partia para onde? Para uma terra longe da Terra. Assim lá estavam deitados os rapazes, perdidos no longe. No longe que as suas jovens vistas alcançavam e perdidos no longe que a vista não alcança. De tal modo concentrados nos sonhos e alheados dos corpos que não se aperceberam que com o lento passar do tempo o vento, que tinha sido brisa, aumentara, crescera, soprava e rugia agora com violência vergando as árvores e levantando no ar as folhas e a poeira.

O vento cresceu. Cresceu muito. Transformou-se num gigante. Um gigante que tudo estremecia e volteava. E, de súbito, uma rajada imensa, imparável, vinda talvez de uma das terras sem fim, arrimou junto dos garotos e, sem que eles o conseguissem evitar, surpreendeu-os e arrebatou-os ao solo. Içou-os no ar. Curiosamente fê-lo sem violência. Rapidamente num golpe certeiro, mas sem estremeção, como uma mãe que na praia arrebata o seu bebé afastando-o da onda que ameaça tragá-lo. Energicamente mas sem magoar. Foi assim que o vento pegou nos rapazes e os levantou no ar. Pegou neles com as palmas das mãos. E transportou-os. Foi tão rápido que eles nem conseguiram reagir. Simplesmente, planaram. Viram-se de súbito a vogar por sobre o solo a uma altura que pertence só aos pássaros. Deixaram-se levar. Que outra coisa podiam fazer?

O vento transportou-os pelo ar durante algum, breve, tempo. Quando achou que já chegava, como pai que empurra o baloiço onde o filho se diverte, murmurou-lhes um suave: chega. E começou a descê-los em direcção à terra, soltando-os docemente sobre um relvado verdejante onde ficaram deitados de bruços na mesma posição em que tinham saído do morro. Olharam à volta. Nada do que viam era reconhecível. Não viam o espaçoporto, nem o muro, nem as rampas, nada. Tudo tinha desaparecido. Viam apenas uma imensa planície relvada estendendo-se em todas as direcções, no horizonte fundindo-se com um céu que já não era azul. Era avermelhado. Olharam espantados um para o outro. Sentiam-se ligeiramente entorpecidos e paralisados. Durante alguns minutos não se mexeram. Fizeram-no bruscamente quando uma voz estranha soou atrás deles. De um salto puseram-se em pé e olharam na direcção da voz.

— Sr. Comandante e Sr. Imediato, são horas de partirmos — disse o homem alto, fardado com a farda azul da Força Espacial, ao mesmo tempo que fazia uma continência. Só então repararam que eles próprios estavam fardados com a mesma farda azul. Só então repararam na gigantesca nave vermelha e negra pousada a poucas centenas de metros. Só então repararam que não eram miúdos. Só então repararam que o vento tinha caído.
.