sexta-feira, 30 de novembro de 2007

A aldeia das mulheres marrecas

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A ALDEIA DAS MULHERES MARRECAS

Um estranho anátema acontecia naquela luminosa região, formada por doces e suaves colinas cobertas de chaparros cujos grossos e rugosos troncos se erigiam fálicos numa ânsia de penetração funda nas copas que lascivas os sobrepujavam, colinas casadas por ligeiros vales serpenteantes onde a luz se entontecia e inebriada vacilava como uma louca bacante entregue à devassidão.

Os povoados dispersavam a conveniente distância uns dos outros, não fosse a vizinhança demasiado próxima contaminar virulentamente a tradição onírica de cada um.

Vista do alto, onde moram os deuses e as deusas, parecia um imenso tapetinho verde sarapintado aqui e acoli de manchazinhas brancas adossadas por outras cor de tijolo.

Aquele panorama podia ser em qualquer parte do mundo. Mas aquele lugarejo, aquela aldeola, que nem presidente de junta tinha porque o eleito residia agora no cemitério e ainda não tinha sido substituído, ... calma que não é para fazer é para ir fazendo..., aquele povoado aldeão sofria de um sinistro réprobo.

Num distante passado já acontecido em que os ursos, os lobos e os vates ainda rondavam os montes ao derredor, ocorrera que, vá-se lá saber porquê, os homens machos do burgo apenas escolhiam as mulheres fêmeas mais dotadas de enormes e poderosas glândulas amamentadoras.

Talvez algum feiticeiro louco os tivesse convencido que essas eram as mais adequadas para a procriação, pela tremenda capacidade de produzir leite para amamentar as crias e garantir o futuro.

Talvez tivesse apenas a ver com uma questão estética. Talvez fosse apenas uma questão freudiana...

Fosse o que fosse, mulher de mamocas pequenas estava condenada a não ter parceiro sexual e sobretudo descendência.

É claro que a implacável lei da selecção natural, que o Darwin não dorme em serviço, não se fez rogada e impôs a sua acção.

Assim, ao longo de centenas de anos, as mulheres de seios minúsculos foram rareando cada vez mais e cada vez maior era o número de luxuriosas fêmeas de grandes, enormes, gigantescas tetas. Que não pararam de crescer porque os machos as desejavam cada vez maiores.

Com o tempo, claro que o povoado ficou reduzido apenas a mulheres de grandes mamas que fariam inveja à Dolly Parton. Muitas eram tão grandes, que lhes davam pelos joelhos.

A gravidade, também ela poderosa e implacável, não deixou de promover o seu efeito.

De tão grandes e pesadas que eram as mamas, que elas eram obrigadas a inclinar-se para a frente, chegando algumas mesmo a desequilibrar-se e a cair de borco no chão, ganhando horríveis equimoses.

Assim, as mulheres daquela aldeia, mercê da excêntrica inclinação para a frente, começaram a ganhar enormes bossas dorsais.

Não se via uma mulher, já nasciam assim o que complicava o parto, que não tivesse as mamas pelas coxas e uma gigantesca geba no dorso. Aliás, muito prática para transportar bilhas com água e cestas de fruta.

E por isto aquela aldeia era conhecida nos arredores p'la aldeia das mulheres marrecas!


Oeiras, Novembro de 2007
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quinta-feira, 22 de novembro de 2007

enlace

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Um registo um pouco diferente...


ENLACE

Era uma mula maravilhosa a minha mula a minha Graciete. Grande e possante forte e grossa. Pujante trabalhadora incansável. Quadris de fazer inveja. Tinha-a há seis anos, desde que a comprara para a usar nas lides do campo, e nunca me arrependera da esdrúxula maquia que dera por ela ao cigano Manel de olhar enviesado que ma vendera na feira do gado.
Mas havia qualquer coisa no seu olhar que me perturbava a ponto de não me deixar dormir sossegado à noite. Os modos como ela olhava para mim desde há uns tempos para cá deixavam-me com a cabeça às voltas e os ouvidos a buzinar.

Eram infinitas as horas que eu passava à espera de adormecer, com o pensamento naquele olhar lascivo que me despia de alto a baixo todos os dias pelas 6 h. da madrugada, quando a ia buscar ao estábulo para a atrelar à carroça na qual eu transportava as hortaliças que tinha colhido para as levar ao mercado, ou as alfaias para o campo onde eu passava todo o santo dia a vergar o aço em busca do meu sustento.

Foram muitas as vezes em que eu cansado da puta da labuta que esta vida não chega a netos, de pés fincados nos grossos torrões da terra lavrada, enxada na mão esboroada, com o incómodo mosquedo a voltear e a zunir em torno de mim, parei para descansar um pouco tirando o lenço encardido do bolso das calças para limpar o suor da testa e do pescoço, e olhei na direcção dela, da minha Graciete, descansada sob o chaparro à sombra atrelada ao carro, e a surpreendi a olhar-me obscena com aqueles olhos gigantes como bolas de snooker, daquelas brancas do snooker da tasca do Amadeu, olhos que ameaçavam comer-me. Que gritavam aos quatro ventos, ou oito vento sei lá, que me queriam comer!
Eu estremecia ante aquele olhar e rapidamente desviava os olhos noutra direcção qualquer. Às vezes lá para o alto, para uma ou outra cegonha, ou até mesmo uma águia, que teimavam em recortar o céu. Mas a pua na minha nuca não me enganava e continuava a sentir aquele olhar como uma farpa de aço cravada no meu dorso.

Comecei a acreditar que a mula me desejava. Apenas isso podia explicar o que eu sentia. Ela desejava-me como só uma mula pode desejar um macho.
E cada vez piores eram as minhas noites deitado no catre no meu casebre, na escuridão a pensar na minha mula a pensar naqueles olhos... até que um dia, senti como que uma ordem vinda de dentro que me gritava que eu tinha que pôr termo àquilo!

Eram umas quatro da manhã acordei alagado em suor com o entre-pernas todo molhado e pensamentos confusos na cabeça.
Tremia, sem perceber porquê, porque era Verão e não estava frio. Levantei-me com os joelhos bambos e de imediato o olhar da minha mula surgiu à minha frente. Vi os seus enormes e redondos olhos fixarem-me da parede encardida do meu quarto. Sentia-me envolto numa espécie de nevoeiro húmido e espesso. E soube logo o que tinha que fazer.

Vesti o meu melhor fato aquele a que o povo chama domingueiro sem sequer me lavar. Fato que se resumia a umas calças de fazenda cinzentas meio surradas e com um remendo nas nalgas um casaco castanho que herdei do meu irmão que morreu no Ultramar na Guiné uma camisa branca de popelina que comprei quando fui há uns anos à Feira de Castro e as botas cardadas de todos os dias que ensebei é claro.
Fui ao armário da despensa buscar a caçadeira que o meu pai me tinha deixado de herança enfiei-lhe dois cartuchos fechei-a e sai de casa, dirigindo-me em passos largos e decididos para o estábulo. Tinha que ser!

O dia raiava estava fresco e ainda se via a luz da Lua assomar por trás do montado. Abri a porta do estábulo decidido.
Ela ali estava a dormir descansada, claro. Mas assim que ouviu o ranger da porta olhou-me com ar espantado, aquele olhar de quem não acredita nas horas.
Olhou-me longamente, incrédula, por me ver ali tão cedo. As mulas têm um apurado sentido das horas, dizem.
De súbito reparou na arma que eu transportava na mão e estremeceu. Todo o seu corpo maciço foi possuído pelo demónio da tremura. Creio que adivinhou ou pressentiu o que ia acontecer.

Relinchou docemente duma forma que me revolveu as partes baixas e olhou-me fixamente com aquele seu olhar de todos os dias mas desta vez mais intenso.
Tentei não a olhar durante muito tempo, sobretudo nos olhos. Eu sabia como isso me podia trair. Todo o matador o sabe. Era apontar e pum!
Expedito, levantei a caçadeira e apoiei-a no ombro. Respirei fundo, expirei e retive o ar durante uns instantes, avos de segundo, ao longo dos quais cai no erro parvo de olhar os seus olhos, as suas pupilas negras fixas nas minhas. Erro de principiante.
Os seus olhos fixavam os meus com um amor e uma paixão de tal modo arrebatadora, avassaladora, que senti o ar faltar-me como se tivesse levado com uma marreta no estômago! Lentamente o meu dedo moveu-se para pressionar o gatilho...
Os meus olhos continuavam fixados nos seus que continuavam fixados nos meus...
Os seus olhos...

Estamos casados há doze anos e temos três rebentos, uma bonita mula e dois rijos machos.


Oeiras, Novembro 2007
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sexta-feira, 16 de novembro de 2007

primeiro INSTANTE

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Não são apenas os deuses que devem estar loucos...
Também eu pareço não escapar ao tropel do ensandecer. Que outra justificação poderá existir para que eu junte aos meus sete blogs, mais UM ?!
Devo ter enlouquecido pela certa !!

Na verdade, a razão é simples.
Necessito de um blog para publicação exclusivamente literária, isto é, para publicar os meus contos, estórias, memórias e ficções. E, já agora, os devaneios e as alucinações, balouços pelos mares do escrevinhar, gatafunhar e rabiscar. Os meus instantes de esbracejar bramido e agitado, de anacoreta perdido em mar encapelado, náufrago dominado pelo temor e terror de se afogar...

Tenho já alguns blogs nos quais vou publicando algumas coisas. Mas são espaços, apesar de 'temáticos', muito eclécticos.
Nos blogs dedicados a VILA REAL, a ALCÁCER DO SAL e a OEIRAS, p.ex., publico, além de memórias da minha passagem por estes lugares, não só textos mas também fotografias, desenhos, documentos vários, enfim, tudo o que possa estar relacionado com essas localidades.
O blog LENDAS TECNOLÓGICAS é literário, é certo, mas está encerrado. Finito. Corresponde a um projecto de livro que nunca viu a luz do dia, provavelmente nunca verá, e que se cristalizou sob a forma de blog. Não faria sentido acrescentar-lhe mais nada. É ponto final.
Por seu turno, o CARACOL CAROLAS é um blog generalista, "tudo ao molho e fé em Deus", sobre o qual costumo dizer que vale tudo menos tirar olhos... Nele tenho imensos textos dispersos, mas a sua consulta e leitura torna-se difícil, precisamente devido à enorme profusão de material de toda a natureza e feitio no seio do qual se encontram.
Os restantes, OLHARAPO DE OEIRAS e AI PORTUCALE são apenas divertimento e nem merecem grande menção neste contexto.

Tenho muito material por cá, de toda a ordem, pronto para publicação, sem contar com aquele que vou preparando e desenvolvendo consoante o tempo disponível que vou arranjando. Material que não se enquadra em nenhum dos blogs anteriormente citados.
Pareceu-me que só me restava uma solução. Criar mais um blog, este exclusivamente destinado à publicação do que tenho produzido, do que estou a produzir e do que espero ainda vir a escrever.

E assim, nasceu o

INSTANTES

Para inaugurar este novo espaço, começo com um curto conto que se encontra publicado na colectânea UM MAR DE CONTOS editado pela LULU, resultante do Concurso de Contos Junho-Julho 2007 do site ORA VEJAMOS...
Espero que vos agrade.


VENTO E O SONHO DOS ADOLESCENTES

O vento agitava suavemente as folhas das árvores e dos arbustos, provocando um doce murmurar na paisagem. Ao longo da negra estrada e paralelo a esta saracoteava um muro baixo pintado de branco com estranhos grafittis monocromáticos de aspecto paramilitar. Implantadas como gigantescas aranhas na ainda assim bela e imensa planície verde eram visíveis ao longe as rampas de lançamento do espaçoporto onde chegavam e de onde partiam para o espaço cósmico naves de todos os tipos. Naves de transporte de pessoas e de cargas, naves de passeio, naves de exploradores, naves militares de destinos secretos, enfim naves de todas as formas e feitios, imensas e brilhantes como sóis.

Era o que observavam os dois rapazes, amigos e colegas de escola, ao lado um do outro, deitados de bruços no alto de um pequeno morro. Um deles, morador na cidade, tinha ido passar as férias a casa do outro que habitava na pequena vila perto do espaçoporto. Este tinha-o desafiado para irem até lá para verem as naves partirem e chegarem, o que era um espectáculo fabuloso e que ele nunca tinha visto ao vivo mas com o qual tinha sonhado muitas noites.

Sonhava que era um garboso e valente comandante de uma nave militar de combate e que todos os dias tinha missões no espaço exterior, onde vivia as mais arriscadas aventuras, regressando sempre à Terra, aterrando a sua nave para ser reparada e passando o resto do dia contando aos amigos e amigas, sobretudo às amigas, as suas aventuras e ansiando por regressar ao espaço e enfrentar audaz o perigo. Enfim, sonhos de um jovem adolescente. Partilhava este sonho com o amigo. E muitas das suas brincadeiras e jogos giravam em torno desse tema. Tinham mesmo formado um clube a que, pomposamente, chamavam Clube Apollo XXI do qual eram os únicos sócios. Ora, pois se para ser sócio, tinham posto como condicionante que os candidatos soubessem de cor os nomes, as moradas e os números de telefone de todos os astronautas e os nomes, os pesos, as medidas e as velocidades de todas as naves da história espacial humana!

De tempos a tempos uma imensa nave rugidora surgia do alto, primeiro silenciosa mosquinha negra contra o azul do céu, depois troante crescendo agigantando-se, que suavemente pousava numa daquelas plataformas da esperança. Numa qualquer outra rampa, em alternância, o processo era inverso e era uma que partia. Partia para onde? Para uma terra longe da Terra. Assim lá estavam deitados os rapazes, perdidos no longe. No longe que as suas jovens vistas alcançavam e perdidos no longe que a vista não alcança. De tal modo concentrados nos sonhos e alheados dos corpos que não se aperceberam que com o lento passar do tempo o vento, que tinha sido brisa, aumentara, crescera, soprava e rugia agora com violência vergando as árvores e levantando no ar as folhas e a poeira.

O vento cresceu. Cresceu muito. Transformou-se num gigante. Um gigante que tudo estremecia e volteava. E, de súbito, uma rajada imensa, imparável, vinda talvez de uma das terras sem fim, arrimou junto dos garotos e, sem que eles o conseguissem evitar, surpreendeu-os e arrebatou-os ao solo. Içou-os no ar. Curiosamente fê-lo sem violência. Rapidamente num golpe certeiro, mas sem estremeção, como uma mãe que na praia arrebata o seu bebé afastando-o da onda que ameaça tragá-lo. Energicamente mas sem magoar. Foi assim que o vento pegou nos rapazes e os levantou no ar. Pegou neles com as palmas das mãos. E transportou-os. Foi tão rápido que eles nem conseguiram reagir. Simplesmente, planaram. Viram-se de súbito a vogar por sobre o solo a uma altura que pertence só aos pássaros. Deixaram-se levar. Que outra coisa podiam fazer?

O vento transportou-os pelo ar durante algum, breve, tempo. Quando achou que já chegava, como pai que empurra o baloiço onde o filho se diverte, murmurou-lhes um suave: chega. E começou a descê-los em direcção à terra, soltando-os docemente sobre um relvado verdejante onde ficaram deitados de bruços na mesma posição em que tinham saído do morro. Olharam à volta. Nada do que viam era reconhecível. Não viam o espaçoporto, nem o muro, nem as rampas, nada. Tudo tinha desaparecido. Viam apenas uma imensa planície relvada estendendo-se em todas as direcções, no horizonte fundindo-se com um céu que já não era azul. Era avermelhado. Olharam espantados um para o outro. Sentiam-se ligeiramente entorpecidos e paralisados. Durante alguns minutos não se mexeram. Fizeram-no bruscamente quando uma voz estranha soou atrás deles. De um salto puseram-se em pé e olharam na direcção da voz.

— Sr. Comandante e Sr. Imediato, são horas de partirmos — disse o homem alto, fardado com a farda azul da Força Espacial, ao mesmo tempo que fazia uma continência. Só então repararam que eles próprios estavam fardados com a mesma farda azul. Só então repararam na gigantesca nave vermelha e negra pousada a poucas centenas de metros. Só então repararam que não eram miúdos. Só então repararam que o vento tinha caído.
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