sexta-feira, 30 de maio de 2008

desejo algarvio

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Quantas vezes desde pequeninos se traça o nosso destino, enovelado numa trama que nos lançaram como rede sobre pescado...


DESEJO ALGARVIO

Tinha um secretíssimo desejo desde criança de tenra idade - quando era tenrinho, quer-se dizer.
Sonhava, desejava ardentemente, ser um Corifeu.
Ouvira a palavra, na voz grave e rouca de tonalidades prenhes de escarro amarelado de tabaco de onça, do seu avô paterno, pela primeira vez, aos 6 anitos de idade e não lhe conhecia o sentido.
Mas desde logo se apaixonou pela bela e sublime sonoridade agreste dela:

— CO-RI-FEU!

Desde esse instante interiorizou que queria ser um corifeu, sem mesmo saber o que isso era. Teria muito tempo para aprender!
Sempre que pensava na palavra as entranhas vibravam-lhe como um carrossel, ou como as rodas da carroça da tia Anica.
E quando a mãe lhe perguntava:

— Anibalzinho, o que queres ser quando fores crescidinho?

De imediato da sua boquinha minúscula e desdentada saltavam as palavras como que cuspidas contra a brisa algarvia, contra o vento quente de Suão:

— Corifeu, mãezinha! Corifeu!

Imagine-se se o avô, ao invés, tive-se dito:

—EUNUCO...


Oeiras, 15 Abril 2006
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sexta-feira, 23 de maio de 2008

o homem fragmentado

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Há sempre na vida de cada um de nós um instante, quiçá breve, mas que alguns seres que somos poderão sentir como toda uma existência, um instante como este em que o todo se transmuta em nada.
Recriação dum original de 12out2002.


O HOMEM FRAGMENTADO
recordando O Homem Demolido de Alfred Bester

Deitado na mais completa e dura escuridão, aqueles negrumes que doem como grito rasgado em noite de nevoeiro, mergulhado num silêncio atrozmente audível, o homem sentia no corpo nu o contacto áspero, quase obsceno, do lençol.
Não era o contacto habitual. Não era o toque doce, macio e suave dos lençóis da sua cama, onde repousava todas as noites da labuta diária.
Sentia que havia algo de estranho a envolvê-lo, a amortalhá-lo, Como se um espartilho o envolvesse e lhe reprimisse os movimentos. Sentia-se fortemente abraçado por um sudário. Invisível mas perceptível.
Procurou concentrar-se no seu próprio corpo, na sua imobilidade. Focou a atenção no tacto, o único sentido que naquelas circunstâncias lhe garantia alguma certeza no contacto com o real.
A pouco e pouco sentiu que o seu corpo se fragmentava em minúsculos pedaços que iam desaparecendo dele sem que o pudesse evitar, pedaços que se soltavam impossíveis de recuperar.
Pedacinhos que a pouco e pouco se transfiguravam em grandes bocados. Não havia dúvida! O seu corpo desintegrava-se!

Num esforço mental gigantesco, titânico, tentou integrar-se, reunir as peças, os fragmentos que se soltavam, aglutiná-los num só corpo, o seu corpo de sempre, de todos os instantes, de todos os dias, de todos os prazeres e desprazeres, corpo ao qual se habituara e com o qual vivera toda a vida, mas havia algo exterior a ele que o impedia.
Havia uma força terrível e tremenda superior à sua que não deixava!
O seu corpo fragmentava-se como se fosse uma peça de porcelana mal colada, cujos pedaços, por força da gravidade, vão escorregando.
Primeiro sentiu que ficava sem pernas, sentiu que elas se separavam do corpo, e deixou de as sentir por completo.
Depois sentiu que lhe desapareciam os braços, que deixavam de existir.
Ficou reduzido ao tronco e à cabeça. Cabeça onde já nem a dor cabia.
Mas o tronco não demorou a desaparecer também no nada, seguindo o caminho do resto de si.
Estava agora reduzido à cabeça, a qual se apoiava, grotescamente tombada de lado, na almofada, solitária.
Tentou gritar mas a falta de pulmões que lhe fornecessem ar às cordas vocais impediu de sair o grito desejado.
Assim continuou imóvel a sentir os pedaços de si evolarem-se como fantasmas que nunca tivessem existido.
Sem qualquer som caíram-lhe as orelhas.
Como estava escuro não se apercebeu quando os olhos se foram também.
E atrás deles os lábios logo seguidos pelas gengivas, os dentes e a língua.

Quando o despertador de césio tocou ao amanhecer, sincronizado que estava pelo Tempo Universal Coordenado, restava apenas um crânio branco descarnado a envolver o purulento e pútrido cérebro morto, esvaziado do ser.


Oeiras, 15 Maio 2008
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sexta-feira, 16 de maio de 2008

os deuses jogam aos dados

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Disse Albert Einstein (1879-1955) que "Deus não joga aos dados"... Não o creio. Bem pelo contrário, estou convicto que é dos humores divinos e do acaso destes que se gera o tiquetaque que move os ponteiros do relógio. É o que este instante relata, numa recriação dum original de 13 de Outubro de 2002.


OS DEUSES JOGAM AOS DADOS

Um deus ingénuo e infantil já incomoda. Agora veja-se o que acontece quando se juntam quatro deuses ingénuos e brincalhões, a quem foi dado o poder de criar à sua imagem e semelhança, ou não fossem deuses!
Raios! Quão frágil é a nossa existência, quando tudo, afinal, depende dos humores divinos!

Tudo começa no nada absoluto, no vazio infinito e eterno. Naquele nada em que nem mesmo o nada existe. Os quatro deuses, o deus do ar, o deus da água, o deus da terra e o deus do fogo encontraram-se, por acaso, e sentaram-se junto uns dos outros, enfastiados e enxofrados, sem saberem o que fazer. Os seus olhares derivavam de uns para outros, enquanto a eternidade passava com a lentidão enfadonha que só a eternidade pode ter. Foi então que o deus do ar propôs aos outros um jogo. Um jogo divino, está claro, e assim foi...

Era o vazio infinito. Primeiro surgiu o ar. E os deuses viram que o ar era bom. E o ar se fez água. E os deuses viram que a água era boa. E a água se fez terra. E os deuses viram que a terra era boa. E a terra se fez fogo. E viram os deuses que o fogo era bom. E o fogo se fez nada. E os deuses regozijaram. E os deuses viram que o nada era bom. E os deuses riram. E dançaram. E o nada era o nada. E os deuses eram bons. E os deuses fizeram o ar, fizeram a água, fizeram a terra e fizeram o fogo, a partir do nada. E os deuses viram que era bom. E colocaram a sua obra numa singularidade do nada. E o nada se fez tudo. E o tudo se fez todo. E os deuses viram que o todo era bom. E chamaram ao todo cosmos e ao nada chamaram caos. E os deuses viram que o cosmos era bom e os deuses viram que o caos era bom. E os deuses viram que eram bons. E riram muito. Gargalharam. E fundiram o caos e o cosmos. E o ser, foi. E viram os deuses que era divertido, o ser. E riram de novo. E numa rambóia alucinante confundiram a água com o ar, a terra com o fogo, o fogo com a água e esta com a terra, e o ar confundiu-se com o fogo e o caos e o cosmos fundiram-se numa confusão indescritível... E os deuses riram. E viram que era bom. Rebolaram-se no chão como doidos.

E naquela confusão surgiu o homem. E os deuses riram e gargalharam por muito tempo, pois nunca tinham criado nada tão ridículo, insignificante e divertido como o homem nu! E o próprio homem viu os deuses. E viu que os deuses eram bons e divertidos. E o homem riu. Até lhe doer a barriga. E o homem gargalhou. Até às lágrimas.
Só parou de rir quando percebeu que não era perfeito como os deuses. Sofria de hemorróidas!


Oeiras, 17 Abril 2008
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sexta-feira, 9 de maio de 2008

destino de insecto

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Diz a canção que "O destino marca a hora".
Diz Einstein que "Deus não joga aos dados".
Mas será mesmo assim, será verdade que o futuro está 'escrito', superiormente determinado, e a nossa vontade subjectiva, quiçá os nossos humores e convicções, nada podem fazer para o contrariar? Ou é o acaso que rege o devir?
Acaso ou necessidade? Acaso. Monod dixit... e eu concordo com ele.
Este instante é uma recriação dum original de 28 de Outubro de 2002.


DESTINO DE INSECTO
ensaio para um monólogo com uma imperial e uma mosca

Um homem vulgar e solitário, de aspecto algo encardido, está sentado a uma mesa de café.
Está a beber lentamente, com pequenos golos, um copo de cerveja e a comer tremoços dum pequeno pires.
Está distraído a traçar desenhos imaginários no tampo da mesa com a água que escorreu do copo, quando uma rápida e esvoaçante mosca pousa nela, a curta distância dos tremoços.
O homem observa curioso a mosca a andar desgraciosa sobre a superfície húmida da toalha de papel.
O homem apanha a mosca com um gesto rápido e certeiro.
Pega-lhe pelas asas, segurando-as juntas entre o indicador e o polegar, enquanto ela zine e se debate para se libertar, agitando furiosamente as minúsculas e frágeis perninhas.

Apoiando o cotovelo na mesa, segura a mosca à frente do rosto olhando-a fixamente enquanto pensa em alta-voz:

— TENHO O TEU DESTINO NA PONTA DOS MEUS DEDOS.

[ pequena pausa ]

— PODIA MATAR-TE AGORA MESMO. ACABAR COM A TUA EXISTÊNCIA !

[ pausa longa ]

— NÃO SEI COMO SERÁ A TERRA DAQUI A 500 MILHÕES DE ANOS. NEM SEQUER SE AINDA EXISTIRÁ UMA TERRA...

[ pequena pausa ]

— NEM SE A ESPÉCIE HUMANA CONTINUARÁ VIVA OU TERÁ DESAPARECIDO HÁ MUITO, PARA TODO O SEMPRE E, QUEM SABE ?, SIDO SUBSTITUÍDA POR UMA OUTRA ESPÉCIE INTELIGENTE.

[ pausa muito longa ]

— UMA ESPÉCIE INTELIGENTE DA QUAL TU, ESTÚPIDA MOSCA, PODES SER UM ANCESTRAL...

[ pequena pausa ]

— SIM, QUEM SABE ?! 500 MILHÕES DE ANOS É MUITO TEMPO...

[ pequena pausa ]

— POSSO TER ENTRE OS DEDOS UM ANCESTRAL DE UM FUTURO SÓCRATES, DE UM CRISTO, DE UM HITLER...

[ pausa mais longa ]

— TENHO O TEU, DELES..., DESTINO NA PONTA DOS MEUS DEDOS.

[ pequena pausa ]

— MAS HOJE É O TEU DIA DE SORTE ! PORQUE SOU UM DISCÍPULO DE NIETZSCHE.

[ pausa ]

"NÃO É A DÚVIDA MAS A CERTEZA QUE ENLOUQUECE !"

O homem abre os dedos soltando a insignificante mosca que rapidamente voa para longe, desaparecendo no meio do fumo denso, em busca dum destino ou duma vida....


Oeiras, 24 Abril 2008

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sexta-feira, 2 de maio de 2008

o velho levantou-se lentamente...

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Este instante da vida de um velho foi originalmente manuscrito em 31 de Março de 2001. Foi desenvolvido a posteriori em 19 de Junho de 2001 e em 11 de Outubro de 2002.
É uma daquelas estórias que demoram a adquirir uma forma acabada e definitiva. Forma que apresento hoje aqui.
O mote foi-me dado pela minha experiência pessoal, pelo contacto com uma pessoa com quem trabalhei numa gráfica em Lisboa e que inspirou o personagem aqui representado.
Não é um retrato dessa pessoa, mas sim uma elaboração feita a partir da realidade.


O VELHO LEVANTOU-SE LENTAMENTE...

O velho, ossudo e de cabelo completamente branco, magro e alquebrado, levantou-se lentamente do seu lugar fazendo ranger a vetusta cadeira de braços de madeira e acento de cabedal escuro surrado pelo uso. Compôs a gravata grenat riscada, único toque de cor que trazia vestido, ajeitou agarrando-o pelas abas o casaco preto e compôs também o relógio de pulso agitando o braço. Olhou circunspecto o tampo da secretária de madeira escura, cheio de papéis que tinha acabado metodicamente de organizar em montinhos. Pegou na pasta de cabedal preto, levantando-a do chão sem indícios de pressa. Contornou a secretária, acercou-se da porta do gabinete. Rodou o puxador e abriu-a. Com a mão livre apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás de si.
Caminhou na lentidão dos seus 78 anos ao longo do corredor com paredes brancas de tabique e soalho de tábuas, revestido por uma carpete marroquina, silencioso, de olhos fixos no chão.
Deu as boas-noites à hirta recepcionista, sentada à secretária no pequeno hall da entrada. Mulher de meia idade de grandes mamas excessivamente maquilhada, quase silenciosa na sua quietude gordurosa. Gritantemente explosiva nas cores berrantes do seu vestuário.
Não se cruzou com mais ninguém até chegar à rua, que ia ficando sombria com o aproximar da noite. Já todos tinham saído.

Caminhou ao longo do passeio estreito e irregular, evitando os transeuntes apressados e os buracos na calçada. Os carros passavam velozes, trepidantes nos paralelepípedos de granito da rua, buzinando e expectorando fumo espesso. Condutores e peões gritavam imprecações e protestavam uns com os outros.
Dirigiu-se à estação de Metro, a uma centena de metros dali. Na mão direita conservava bem segura a velha pasta de cabedal negro já muito gasta dentro da qual transportava... sabe-se lá o quê? Ilusões? Segredos? Mentiras? Paixões? Velhas memórias de ideologias caducas?
Após um trajecto difícil mas sem percalços chegou à entrada da estação de Metro e desceu vagarosamente as escadas apoiando-se no corrimão, no que foi acompanhado por dois ou três transeuntes.

Avançou pela gare, quase deserta apesar da hora do dia, até cerca de um terço do comprimento desta. A longa prática tinha-lhe ensinado qual o melhor ponto para esperar a composição, e entrar numa carruagem na qual ficasse perto da saída ao chegar à estação de destino.
Parou à espera na imobilidade cinzenta, apenas quebrada aqui e ali por alguma fraca luz amarelada. Sabia que não iria ter que esperar muito.
O tenebroso grito lancinante do comboio inundou de súbito o subterrâneo. Anunciou a sua chegada. O comboio, como um tiro, emergiu do túnel, estacou e abriu as portas.
O velho deixou sair os passageiros que ali terminavam a viagem e só depois avançou e entrou no comboio. Escolheu um lugar e sentou-se muito direito junto à janela com a pasta sobre os joelhos.
As portas fecharam ao som da buzina. O comboio arrancou estridente, trepidando numa aceleração crescente, e invaginou-se no túnel negro à sua frente, como uma serpente, perdendo-se sob a cidade palpitante, cardíaca.


Oeiras, 25 Março 2008
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