domingo, 15 de março de 2009

revelação

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REVELAÇÃO

Era uma noite negra como breu. A lua estava nova como uma virgem intocada e o denso manto de nuvens ocultava as pálidas estrelas.
Apenas uma ténue, muito ténue, claridade permitia distinguir a longa língua negra sobre a qual caminhava, das bermas densas mais e menos escuras aqui e ali que a bordejavam.
Saíra do seu canto há já um bom par de horas em busca do sinal revelador que há anos procurava. Estava prenhe de fé. Duma fé absolutamente inabalável. Sentia que a revelação estava para breve. Para muito breve.
O cansaço fazia já efeito nas suas pernas, através duma dor aguda que descia por elas abaixo. Mas tentava não pensar nisso e continuava na sua caminhada.
Súbito, numa volta do caminho, viu o sinal. Finalmente! A tão ansiada revelação atingiu o íntimo do seu ser. Inundou-o como um oceano quente e doce.
O sinal, uma aura luminosa, cresceu desmesuradamente à frente dos seus esperançosos olhos e ele, acelerando o passo na sua direcção, gritou:

— EU VEJO A LUZ! EU VEJO A LUZ!

Não teve foi tempo para o relatar a ninguém.
O pesado camião TIR atingiu-o em cheio e continuou viagem, sem se deter.


Oeiras 14 Março 2009
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mau estar

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MAU ESTAR

O mau estar que se instalara na sala persistia e teimava em não desaparecer.
Nem a generosa porção de presunto serrano, delicadamente adormecida numa travessa de cristal da Baviera com pegas e minúsculos pés de prata, acompanhada dum excelente e genuíno queijo da Serra, docemente esparramado numa tábua de nogueira, dum saboroso, requintado, pão saloio e duma esplêndida garrafa de tinto da Vidigueira, colheita de 2001, quebravam o gelo e aliviavam a tensão opressiva acaçapada sobre todos.
A pesada e densa nuvem esmagava os presentes. Colara-se aos seus corpos como geleia.
Ninguém se denunciou nem acusou ou sequer se desculpou. E o cheiro fétido, grotesco, intestinal, permaneceu no ar por muito tempo.


Oeiras 10 Março 2009
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domingo, 8 de março de 2009

ensaio para uma micronarrativa

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Caras(os), no meu deambular pela escrita decidi explorar uma outra vertente da prosa, em busca de novos caminhos. Concretamente a Micronarrativa. Espero que vos agrade.

O que são micronarrativas?
As micronarrativas, em nosso entender, para além de serem breves (não excedendo as 200 palavras), devem ser narrativas, ou seja, contar uma história, quer seja em prosa ou em verso.
in Minguante


DISSOLVÊNCIA NO TEMPO

A névoa nevoenta, leitosa e pegajosa, que tudo cobria como um bicho peçonhento, começava a dissipar-se e a permitir o revelar das formas do mundo tido como real.
Mas havia um algo indefinido fora do lugar. Fora de si?
Não era um algo palpável. Era antes uma espécie de poeira feita de indiferença como se a realidade, apesar de descoberta pela névoa fugidia, se quisesse manter afastada de olhares indiscretos.
Fosse qual fosse a natureza obscura do fenómeno, este provocava-lhe a estranha sensação de ter deixado de pertencer àquele universo.
Via os prédios através do véu cristalino das vidraças recém limpas.
Via as pessoas e os carros através da cortina irreal que lhe tolhia a visão.
Via os objectos quietos num lugar que não lhes pertencia. Ou deixara de pertencer?
Aquela sensação começava a tornar-se atroz à medida que saía do torpor que a disfunção espácio-temporal lhe provocava.
A clareza com que aparentemente via, com o dissipar da névoa, era um embuste. Sentia-o cada vez mais intensamente.
Não conseguia despregar o olhar dos telhados que via para além da rua.
O seu aspecto etéreo hipnotizava-o.
Assustou-se e estremeceu com o ladrar de um cão longínquo.

Oeiras 17 Fevereiro 2009
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