sexta-feira, 25 de julho de 2008

l’Huomo diroxo e Mutcha - atracções

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Este texto, aqui na sua versão original, faz parte duma estória mais vasta, da qual existem outros capítulos finalizados, e que se encontra por concluir.
O contexto é um misto de tecno-futurismo e non-sense com algumas pinceladas de fantástico e surrealismo.
Este instante é a introdução da referida estória, e foi escrito em 21 de Abril de 1993.


L'HUOMO DIROXO E MUTCHA - ATRACÇÕES

Naquela parte da cidade as ruas eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios abandonados, arquitecturas antigas, funções duvidosas.
Vapores fétidos subindo por todo o lado, saindo de buracos engradados, no pavimento pejado de poças de água oleosa por toda a parte, conspurcado de detritos industriais e restos orgânicos.

Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!
L'Huomo diroxo saltitava ao longo da rua sem passeios.
Indiferente às poças de água que existiam por todo o lado, saltitava.
Mãos nos bolsos, apito na boca, a pés juntos saltitava. A cada saltinho, uma apitadela. E assim avançava.
Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!

Entretanto, enquanto l'Huomo diroxo saltitava na inconsistência do tempo e na insolubilidade da rua esparrinhando água das poças em todas as direcções, a noite caía, escorria pelas paredes, pelos objectos que encontrava no seu caminho.
A noite caía escorrendo pelos corpos, sorvendo tudo o que encontrava.
A escuridão fechava-se em torno dele, d'el Huomo diroxo, ao mesmo tempo que alguns candeeiros — dos poucos que funcionavam — se acendiam soluçantes, enquanto perigosos smorfles ameaçavam invadir o negrume cúmplice da ausência de luz, ensaiando curtos voos, prenúncios do seu domínio das trevas.

Naquele lugar, naquela cidade, o cosmos avançava e o caos recuava.
Ao longe ouviam-se sons, sonoridades saxofónicas dolorosas e frementes, rasgando a noite como gritos de mocho, lembrando gotas de água a pingar sobre metal.

Saltitando, l'Huomo diroxo prosseguia, a pés juntos. Saltitando e apitando, saltitando e apitando...

Do outro lado da cidade, as ruas também eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios de arquitecturas abandonadas, duvidosas intenções.
Fétidos detritos orgânicos em movimento, arfantes (vivos?), alguns parados pelas esquinas, mergulhados em poças de água, reflectindo néons.
Do outro lado da cidade a noite não existia. Melhor dizendo, a noite estava de tal modo transfigurada que parecia não existir.
A ilusão era a norma. A ilusão era o ser. A ilusão era o caos. A ilusão... passar a noite em claro...

O olhar oblíquo, o cigarro ao canto da boca, a barba por fazer, as sereias no cais, o rugido dos motores das naves preparando-se para partir, a quietude do rio embalando ilusões (algumas dolorosas), mulheres do dia passeando na noite, néons estalando, doendo nos olhos, pavor do negro, da luz que se apaga por falta de corrente...
E os pingos de água caindo sobre metal. E os mochos piando na noite, ecoando nos eucaliptos da imaginação...

Aí caminhava Mutcha. Cruzando néons, desviava-se rápida e bruscamente, no seu ar de habituée, dos obstáculos que lhe surgiam pela frente. Caminhava Mutcha. Na mão, um pião.
Enquanto caminhava, descontraída, cantava mentalmente: eu tenho um pião, um pião que gira... eu tenho um pião a girar na mão; o pião, por seu turno, parecia um mocho. De madeira. Ilusão?
Rumo ao bar, com o livre-trânsito no bolso, caminhava Mutcha, de pião na mão, e mochos esvoaçando no ar, cantando mentalmente. Para si própria?
Assim prosseguia a noite que não era noite...
Mutcha prosseguia. Indiferente, afinal, àquilo que já conhecia bem.
O mocho a piar, os saxofones a tocar, o pião na mão, a canção a martelar-lhe o cérebro...

Também prosseguia, do outro lado da cidade, saltitando, l'Huomo diroxo.
Sem destino, resignado à sua condição de 'saltitão que apita'. Algures, l'Huomo diroxo saltitava. Ausente.
Foi subitamente que se apercebeu do silêncio. Parou bruscamente como se tivesse chocado contra uma parede invisível.
A sonoridade saxofónica que o acompanhara ao longo do seu deambular à deriva não se ouvia. Imobilizou-se. Completamente. A pés juntos. Apito suspenso entre os lábios. Respiração suspensa à entrada do apito.
Apurou os sentidos. Tentou ouvir... Nada! Não se ouvia nada. Nem os smorfles. Parecia que tudo tinha parado.
Então, no meio do silêncio, sem saber porquê ou como, ouviu uma canção bater-lhe no cérebro: eu tenho um pião...; um calafrio terrível percorreu-lhe o corpo amorfo.
Estremeceu. E olhou.


Olhou para o fundo escuro da rua, para as poças de água a reflectir a pouca luz dos poucos candeeiros acesos, tremeu com o frio, sentiu passar sobre si o zumbido de um smorfle, encheu-se de coragem vinda não sabia de onde nem porquê, tirou o apito da boca, colocou-o no bolso, e caminhou decididamente, inchando o peito, em direcção ao negrume, desaparecendo na escuridão dos becos.


Oeiras, 21 Abril 1993
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sexta-feira, 18 de julho de 2008

crónica dum inconfessável

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CRÓNICA DUM INCONFESSÁVEL

Quase todos os dias a via fugazmente. Ou na camioneta ou na gare da estação ou no comboio rápido saindo em Alcântara, segundo lhe tinha uma vez parecido. Eram curtos e breves momentos fugidios. Por vezes, quando esperavam a camioneta lá na rua, tinha um pouco mais de tempo para catrapiscar o olho enquanto ela se deslocava pelo passeio em direcção ao abrigo.

Achava-a interessante. Não particularmente bonita. Mas jovem e de rosto agradável. Olhos espelhando inteligência e profundidade de sentimento. Cabelo escuro quase negro cortado médio. Pequena, razoavelmente mais baixa que ele e sempre de calças e casaco escuros. A roupa pouco justa mas elegantemente vestida a deixar adivinhar, quiçá sonhar com, formas interessantes de uma mulher a amadurecer. Um dia viu-a de saia. Viu-a do joelho para baixo. Pernas a dar para magro, de musculatura bem recortada, saliente. Torneadas. Assentes sobre pés calçados com sapatos pretos de salto não muito alto. Pernas a fazerem sonhar com amores ambulatórios contra uma qualquer parede proibida, longe de vistas indiscretas. Gémeos excitantes.

Apanharam o comboio lado a lado.
Costas encostadas ao separador da carruagem, lia um livro e apoiava-se, para se equilibrar, de pernas ligeiramente afastadas e rígidas, salientando os músculos num assomo de energia imperativa e categórica. Excitou-o mais do que habitualmente. Gravou-se-lhe na memória a fogo bruto. A fogo duro. Inundou-o um delírio de fantasias evocativas de ruas molhadas pela chuva fria do outono, luzes baças pingando no alcatrão estalado e velho, néons crepitando, bocas, lábios, línguas a saberem a mel de alfazema, odores a trigo molhado, sexo túrgido contra ventre em brasa.

Poucos dias depois voltou a vê-la. Surpreendeu-o surgindo de súbito apressada quando ele saía do prédio. Dirigia-se como habitualmente no rumo do abrigo das camionetas mas, sem se deter, passou por trás deste. Talvez uma boleia. Ele apanhou a camioneta que chegava, com aquela fugaz imagem no pensamento, pensando se voltaria a vê-la. Estava no quiosque a tomar a habitual bica quando ela surgiu novamente e se dirigiu também para o quiosque. Ia tomar o seu pequeno-almoço. Olhou-a e reparou como era baixa. A testa dela dava talvez pelo queixo dele. Acabou de tomar o café e dirigiu-se para a gare de embarque. Passado pouco tempo ela passou por ele. Apanharam o mesmo rápido.
Seguiam muito perto um do outro. Pelo vidro separador ao qual ele se apoiava via-a no corredor voltada para o mar perdida em contemplação aquosa. Desta vez observou-a um pouco mais, tentando fazê-lo o mais discretamente possível.

Não soube se percebeu que a observava. Pensou que sim. As mulheres não são indiferentes a um observador solitário. Geralmente dão por isso, apesar de procurarem transmitir o contrário. Ou o mais absoluto desinteresse. Hoje não tinha um ar tão 'executivo'. Estava mais desportiva e fresca. Talvez a adivinhar os 30° previstos para Lisboa.
Tinha também as mesmas pernas. bem torneadas a provocarem-lhe os mesmos desejos inconfessáveis...

Oeiras, 12 Outubro 2002
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sexta-feira, 11 de julho de 2008

bate leve, levemente...

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BATE LEVE, LEVEMENTE...

— MAS QUE PORRA... QUE MERDA É ESTA? O QUE É ISTO?! — praguejou, piscando os olhos, vesgos de quem acaba de acordar dum sono estranho e doentio.

Olhou atónito o sítio onde se encontrava.
Torceu-se, retorceu-se como uma irós, e fez menção de se levantar, o que não conseguiu. Tinha os pulsos bem amarrados por uma corda grossa, presa ao cano do autoclismo. Estava sentado no tampo duma sanita, com as calças para baixo a prenderem-lhe as pernas, numa obscuridade que, apesar de intensa, lhe permitia perceber que estava numa minúscula casa de banho, sem janela, onde um cheiro fétido a fezes e urina se fazia sentir, entranhando-se pelas narinas sem pedir licença.
O coração acelerou e batia como um tambor. Ribombava na caixa torácica e martelava-lhe os ouvidos. Mas que raio era aquilo? Onde estava e o que fazia ali naquela situação?
A última e única coisa de que se lembrava era de caminhar calmamente pela rua na direcção de casa, do seu quarto.

Procurou fazer um flashback, recordar tudo o que tinha feito durante o dia.
Acordara por volta das 11h., com a algazarra que vinha da rua, mesmo por baixo da sua janela. O regabofe era de tal ordem, que não conseguira cair de novo no sono, e levantara-se para ir espreitar à janela a ver o que se passava, apesar de no seu íntimo ter já uma suspeita do que era.
Abrira a janela, debruçara-se e olhara para a rua, para confirmar o que sabia.
As suas vizinhas do prédio do lado, a Matilde e a Gertrudes tinham-se pegado outra vez uma com a outra, à porrada e aos gritos,
Agarradas uma à outra puxavam mutuamente os cabelos e gritavam insultos, indiferentes à pequena multidão que se tinha juntado à volta delas a gozar o prato e sem interferir, que nestas coisas é melhor deixá-las descansadas.

A história era antiga e as pegas useiras e vezeiras.
A Matilde acusava a Gertrudes de lhe andar a comer o homem, e que este a tinha emprenhado daquele aborto que ela fizera seis meses antes.
A Gertrudes defendia-se dizendo que a Matilde é que andava a abrir as pernas aos homens todos lá do bairro que toda a gente sabia que ela era uma grandessíssima putona e até na feira era com os fiscais e tudo e que nenhum dos cinco filhos dela era do marido pobre homem coitado do Mariano que era encornado e ceguinho com certeza porque não fazia nada.
Enfim, eram as tricas do costume entre vizinhas lá no bairro.
Aquelas não eram as únicas. De vez em quando lá havia alguém que se travava de razões com outro, pelos mais diversos motivos.

Aquele chinfrim tinha-lhe afugentado o sono para longe e já nada havia a fazer quanto a isso. Teria que esperar pela noite para ele voltar. O melhor era vestir-se e ir dar uma volta. Curtir um pouco.
Assim fizera. Fora à casa de banho mijar, dar o habitual traque e tirar as ramelas dos olhos, só tomava banho uma vez por mês, para poupar água dizia.
Voltara para o quarto e vestira-se. As calças de ganga e a mesma t-shirt com que andava há três dias e que mais dia menos dia teria que pôr para lavar. Como a mulher do padrasto, a Celeste, ainda não o tinha chateado a esse respeito, ia adiando.

Por falar em mulher do padrasto lembrou-se das belas coxas da gaja, e o calor inundou-lhe o baixo ventre.
A gaja, trinta e dois aninhos, era um portento. Um par de mamas que pareciam dois balões prontos a rebentar nas trombas dum mânfio, um cagueiro d'arrebenta e umas mocas boas como o milho.
Já uma vez em que ficara em casa sozinho com ela, o padrasto fora para Espanha por duas semanas trabalhar numas obras, ele tinha andado a arrastar-lhe a asa. Mas a puta dera-lhe uma grande nega.
Ele bem tentara. Falara-lhe sempre com voz meiguinha, o mais doce que conseguia por entre os dentes cariados, negros e a cair, fizera-lhe algumas festinhas na cara de vez em quando, dissera-lhe como era belo e bem cheiroso o cabelo dela, parecia um vasculho... mas um gajo tem que dizer estas coisas, deixara-a ver na televisão as telenovelas que ela queria, mais os programas do Goucha, da Fátima, da Rita e da Júlia, para se cultivar dizia ela, à conta disto para ver a bola, o seu amado Glorioso, tivera que ir para a tasca do Jeremias, até partilhara com ela uma garrafa de Gin que conseguira gamar no super do Reboredo, para a excitar andara só em cuecas ou calções pela casa, e era inverno e estava um frio de rachar, a fazer um esforço do caraças sempre que passava por ela para encher o peito de ar e encolher a barriga para lhe mostrar o caparro, as gajas gostam, sem ela topar friccionava a sarda para a pôr de pau feito por baixo das cuecas ou dos calções, e aparecia na sala com uma desculpa qualquer para ela ver que ele estava com tesão e que tinha um grande marzápio, capaz de a trespassar e fazer subir aos píncaros da Lua, mas... népias! NÉPIAS!

A cabrona da Celeste nunca cedera.
Resistira sempre aos seus avanços, sem dizer uma palavra, sem dar um sinal de que estivesse interessada numa boa queca. Certamente por temer as consequências, se o padrasto dele soubesse. Este era homem para os matar aos dois e o mais certo era ela não estar a fim de arriscar, devia ser só isso...
Ele, não tinha esse medo. Se o padrasto se armasse em parvo só por causa dum inocente par de cornos, era bem capaz de o enfrentar, enfiar-lhe umas chapadonas nas fuças para o deixar sossegado.
Também, depois de dar uma valente duma pranchada na Celeste queria lá saber do padrasto. Ele que se lixasse.

Lembrava-se bem de que se tinha vestido, que tinha passado pela cozinha, onde bebera uma cerveja fresca à maneira e comera um naco de presunto, pão e azeitonas, o seu habitual pequeno-almoço, acendera um cigarro e saíra para a rua no meu duma canícula tremenda pois o verão estava no pino.
Andara pela rua fora e a meio, lembrava-se, encontrara o Calita, que lhe devia uma cinquenta e que, encostado na soleira duma porta, tentara fazer que não o vira, assobiando para o ar, mas não conseguira evitá-lo quando ele parou e se virou mesmo à sua frente, o agarrou pelo pescoço e lhe pediu o cacau, o graveto, o pilim, os carcanhóis.

— MAN, O MEU GRAVETO?!

— PÁ, CALMA! COOL MAN! EU PAGO! NA BOA, MAN! JÁ TENHO QUASE A MASSA TODA PRA TE PAGAR. OLHA AQUI. — mostrara-lhe uma nota de vinte euros, outra de dez e duas moedas de dois euros, que ele olhara desdenhosamente.

— CAGUEI NESSA MERDA, CARALHO! DEVES CINQUENTA! SE NÃO PAGARES ATÉ AMANHÃ, JÁ SABES... TÁS FODIDO COMIGO!

Afastara-se e continuara o seu caminho, após dar um tabefe na cara do Calita, que ficou para trás a murmurar e a choramingar que lhe ia pagar tudo até ao último cêntimo, nem que tivesse que ir roubar - que era o mais certo... - que eram amigos desde putos, que era incapaz de trair um amigo que era como um irmão, que tinha a mãe doente no Francisco Xavier com um cancro na rata, que a irmã chavalinha tinha passado a noite na mata do Monsanto a trabalhar no oral e euros nicles, que o pólen que vendi ao Óscar moné inda não lhe vi a cor, que ai meu deus esta puta de vida é uma merda...

Recordava-se de ter saído do bairro para a avenida que descia em direcção à grande praça com a estátua moderna de cimento e chapa pintada às cores, na placa do meio, que ninguém percebia que merda era aquela, recordava-se de ir a caminhar pelo passeio da avenida abaixo, a fumar outra cigarrada e a apreciar as gajas que passavam apressadas, mais as estranjas descascadas.
Chegara ao largo, ainda sem saber muito bem onde se dirigir. Gostava de passear ao sabor do acaso. Até que tinha tido uma ideia que lhe iria tornar o dia mais agradável e o calor mais suportável.
Ir comprar uma ganzazita ao Pívias e ir para casa fumá-la, aproveitando pelo caminho para passar no snack do Santos e comprar meia dúzia de jecas fresquinhas para ajudar à festa.
Lembrava-se que assim fizera. Lembrava-se de se dirigir à casa do Pívias, era no prédio amarelo... mas a partir daqui as coisas tornavam-se nebulosas. Um nevoeiro denso, cerrado e escuro envolvia-o e não conseguia recordar mais nada.

— PORRA!

Tinha que fazer o ponto da situação, outra vez.
Remexeu-se no assento, suspirou e olhou em volta, semicerrando as pálpebras, atento aos pormenores.
Estava preso numa minúscula casa de banho, só com a sanita e um urinol à sua esquerda, às escuras, sem qualquer abertura, com a porta a escassos centímetros, sentado no tampo da dita sanita, com as calças em baixo, mas de cuecas.
Não lhas tinham tirado nem a t-shirt. Os pulsos estavam presos por uma corda ao cano do autoclismo, atrás de si e puxavam-o para trás. Olhou para baixo. Tinha os pés descalços mergulhados em água, cheia de mijo, beatas e pedaços de papel higiénico borrados, que inundava o chão, numa espessura de quase dois centímetros. O tecto nada tinha de assinalável, excepto por estar escamado e encardido e ter uma lâmpada apagada pendurada no suporte, sustentado por um pedaço do próprio fio eléctrico. Parecia a casa de banho duma qualquer baiuca do Cais do Sodré. O cheiro fétido, mesmo para ele, habituado a andar na merda, era insuportável, e as moscas que esvoaçavam à sua volta também o incomodavam.


Talvez fosse melhor, ao invés de tentar recordar o que fizera ao longo do dia desde que se levantara, fazer a coisa ao contrário, da frente para trás como se rebobinasse um filme ou uma cassete. Talvez assim conseguisse chegar a uma conclusão. Pelo menos a algo que o satisfizesse, que lhe desse uma ideia, mesmo que pálida, de como ali chegara. Mais tarde pensaria no que fazer para sair dali. Para se pisgar e pôr a salvo.
Concentrou-se no processo de rebobinar a película.
Acordara ali. Antes de acordar tinha estado inconsciente. Isto era óbvio. Mas... e antes disso?
Fez um tremendo esforço para se recordar da última coisa que vira, que sentira, que cheirara, que tocara, que saboreara, que estimulara os seus sentido enfim. Quase conseguia ouvir as cremalheiras do seu cérebro a rangerem do esforço.

Súbito, uma imagem surgiu. Um carapuço a ser enfiado na sua cabeça.
A partir desta imagem de forte pregnância, outras começaram lentamente a surgir do fundo lodoso da sua estilhaçada memória.
Fragmentos emergiram e foram-se juntando em pedaços maiores, formando um puzzle que crescia e que se ia tornando mais compreensível, à medida que ganhava cor e corpo, forma, estrutura.
A densidade das evocações aumentava com esforço, mas claramente.
A memória dos sentidos voltava.
Sentiu o nada sentir, o negrume, a inconsciência.
Sentiu o fugir do espírito para o vazio, o desmaio.
Sentiu de novo a forte pancada na nuca por cima do carapuço, quando este lhe tirou completamente a visão.
Viu as mãos fortes e peludas que saíam de punhos de camisas virginais e mangas de casacos negros, que o seguravam fortemente, acompanhavam no seu silêncio a mudez dos dois gigantes amarelos que saiam do carro que bruscamente travara ao seu lado.
Ouviu o carro travar e guinchar.

Agora recordava-se bem. Descia a avenida e o carro fizera uma travagem violenta ao seu lado, daquelas que deixam quilos de borracha no alcatrão. Dele tinham saído dois homens possantes de ar achinesado que, sem uma palavra, o tinham imobilizado, lhe tinham enfiado o garruço na cabeça, lhe tinham dado uma pancada na nuca. Depois, a escuridão absoluta.
Esta parte lembrava, mas e o antes?
Quem eram aqueles homens e porque carga de água o tinham prendido naquele lugar imundo?

Concentrou-se novamente nas fugazes memórias, que lhe escapavam como água por entre os dedos.
Conseguiu com esforço e tenacidade agarrar uma delas. Suspeitava que esta era um elo relevante e esforçou-se ainda mais.
Lembrou-se que enquanto caminhava pela avenida, vinha a pensar em qualquer coisa de importante. Vinha, vinha. Mas no quê?
O fotograma do filme que tentava rever bateu-lhe no espírito como se uma chapa de aço lhe tivesse caído em cima.
Estava a pensar, precisamente, que suspeitava que andava a ser seguido por agentes de... não recordava.
Recordava, sim, que eles tinham como missão eliminá-lo, um eufemismo para 'matá-lo'. Fazer-lhe a folha, mandá-lo para os anjinhos, para o jardim das tabuletas, por um motivo que ele desconhecia, disto estava seguro, por enquanto. Eles eram agentes duma potência estrangeira, tinha a certeza, e ele nunca se metera em políticas. Queriam matá-lo a propósito de quê?

Que potência era, não sabia. Mas foi rememorando a pouco e pouco o que sabia. o que lembrava. Era uma organização secreta, tão secreta que nem os próprios agentes sabiam que ela existia e que dela faziam parte.
Não tinha ideia de como ele próprio soubera da sua existência. Sempre tivera uma grande intuição para descobrir coisas a partir dos pequenos sinais que nos rodeiam, muitas vezes imperceptíveis. O que era de grande utilidade para cavar da bófia, mesmo antes dela aparecer.
Aflorou-lhe ao espírito, subitamente, o que sabia. A intenção dessa agência secreta era a clonagem de girafas para lhes extirpar os testículos e usá-los para confecção de hamburgueres através duma grande cadeia mundial de restaurantes muito conhecida, pac ou mac qualquer coisa!

Só que para levarem a deles avante era necessário eliminarem do mundo inteiro todas as pessoas que tivessem um especial carinho por girafas, para quando a coisa fosse tornada pública, como sempre acontecia, não haver oposição, manifestações e uma grande bronca de consequências incalculáveis, que poderiam pôr a frágil economia mundial em risco. Ah! Lembrava-se agora! Este era o caso dele.
Quando era carruchinho, praí com seis anos, o padrasto e a mãe, ainda era viva, tinham-no levado ao Jardim Zoológico para ver a bicharada, e o animal de que ele mais gostara fora a girafa, com aquele enorme pescaroço, as gâmbias altas e elegantes, as malhas espalhadas à ganância pelo lombo, o modo curioso de andar, ficara-lhe a atracção e o carinho para sempre. Adorava girafas!
Agora percebia. Ele era um dos que eles tinham que matar, pois claro! Ele nunca aceitaria que se fizessem hamburgueres com culhões de girafa!

Conseguira! Sabia como tinha chegado ali e o porquê!

Uma aguda dor de cabeça tinha-se entretanto instalado na sua mona. Talvez efeito do tremendo esforço de pensar para recordar. Valera a pena. Estava agora na posse de informações que o situavam naquele contexto e o ajudavam a perceber onde estava e porque estava. Era um enorme alívio.
Continuava no mesmo lugar, mas com a vantagem de já saber como ali tinha chegado, e porquê.
Esperava a todo o instante que um dos brutamontes, um dos chinas, aparecesse para lhe pôr o inevitável ponto final.
Contudo, para lá da porta, nada se ouvia. Nem um barulhinho ou um sussurro que indicasse que houvesse vivalma nas proximidades.

Decidiu, até porque se sentia terrivelmente cansado e agoniado com tudo aquilo, fechar os olhos e passar um pouco pelas brasas. Não evitaria que o matassem, mas ajudaria a passar o tempo e a suportar melhor o desconforto. Até chegar a hora.
Assim fez. Inclinou o tronco e a cabeça para trás até onde lhe foi possível. Cerrou as pálpebras, aumentando a escuridão dentro dos olhos, inspirou e expirou longa e profundamente, acalmou, sentiu que o coração batia mais regular e parava com a cavalgada anterior, o duro tambor abandonou-lhe os ouvidos e emudeceu, e ele deixou-se afundar na sonolência que sentia. Afundar-se e afogar-se.

Abriu bruscamente os olhos estremunhados, com o estampido dum escape dum motão.
À frente dos seus olhos o tecto enegrecido da humidade e sujo de cagadelas de mosca mirava-o implacável.
Soergueu o corpo sobre os cotovelos, apoiou-se nas mãos e fez força até conseguir ficar sentado, e olhou em torno de si, espantado.
Estava no seu quarto, semi-despido, descalço e esparramado na cama desfeita. Doía-lhe a cabeça e a barriga e sentia-se tonto. Tinha dificuldade em focar o olhar. Acabou por o conseguir.
Ao seu lado uma lata de cerveja tombada espalhara o conteúdo sobre o lençol.
Olhou de esguelha para o lado. Na mesa de cabeceira o chamon fitava-o vazio e desconsolado, soltando um intenso cheiro a queimado.
Atirou os braços ao ar, desengonçados, abrindo-os estupidificado e deixou-se cair para trás sobre a almofada com a súbita revelação.
Não estava preso em nenhum WC... estava no seu quarto!

Afinal sempre tinha conseguido chegar a casa do Pívias, tinha regressado a casa e ao seu quarto, não tinha sido raptado coisa nenhuma, GAITA!
Tinha bebido as jecas e tinha fumado a ganza.
Agora percebia tudo:

— PORRA, A MERDA DO AXE BATEU-ME MAL!


Oeiras, 30 Junho 2008
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sexta-feira, 4 de julho de 2008

o guardador de porcos

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O GUARDADOR DE PORCOS

O guardador de porcos da aldeia serrana de Covaxisto, conhecido nas cercanias pelo Zé Reco, correu desabrido pelas fragas, exalando o seu típico cheiro nauseabundo a chiqueiro, que sabão algum do mundo conseguiria remover, seguido a curta distância por uma nuvem cinzenta de moscas e varejeiras.
Isto nada teria de extraordinário, ele fazia-o com frequência e já ninguém se surpreendia porque o tinham na conta de maluco, não fora o facto de. naquele dia o fazer como Deus o pusera no mundo, completamente nu, com as pendurezas a abanar, e com uma galinha depenada agarrada debaixo do braço, gritando desalmado:

— AQUI D'EL REI ! AQUI D'EL REI !


— O POBRE DE CRISTO ENSANDECEU! — Exclamou o padre Luís, filho duma beata de Braga, acompanhando um rápido sinal-da-cruz e entrelaçando os dedos, como em oração, quando o sobrinho do ti Quim acorreu à sacristia em sua busca a contar-lhe o ocorrido.
Ele e os amigos tinham visto a excêntrica cena pouco antes enquanto andavam no monte a apanhar amoras, e correram todos para a aldeia a contar às famílias que o Zé Reco tinha apanhado sol na moleirinha, e lhe tinha entrado o demo no corpo.
A ele, Jaimito, o tio incumbira-o de ir dar a notícia ao senhor prior que era a pessoa mais avisada da terra, sabia latim e tudo, e saberia o que fazer.

A notícia espalhou-se pelo povoado como fogo em palha seca.
Pouco demorou para que todos os habitantes soubessem da estória e se juntassem em pequenos grupinhos, aqui e ali, a opinar e a dar sentenças.
Que o melhor era apanhá-lo, que se devia dar-lhe mas era um tiro, que o pai dele já era maluco e tinha sido apanhado a fazer porcarias com as galinhas, que era melhor falar com o Sr. prior, não isto é caso para o bispo, que a culpa era da mãe já falecida por causas nunca apuradas mas havia quem garantisse que fora o homem dela que se metia no vinho que lhe dera com uma garrafa na cabeça depois de lhe chegar a roupa ao pêlo com um varapau e depois tinha dito que ela caíra na escada de pedra de acesso ao poço velho, etc., etc.

Um deles, o compadre Gaudêncio, que tinha combatido nas áfricas, e tinha em casa numa caixa de fósforos um dente que, dizia ele, era dum turra que tinha matado à facada num combate feroz no meio do mato, e que estava na tasca do Patrício com os amigos a deixar correr o tempo à volta duma mesa com uns copos de vinhaça da boa, da adega do Américo, também presente, um valente chouriço feito pela Alice, mulher do Gaudêncio, mulher prendada como já há poucas, e uns bons nacos de pão de trigo, cozido no forno a lenha da aldeia, assim que tomou conhecimento do caso, correu a casa a buscar a caçadeira e a munir-se dum cinturão de cartuchos de chumbo grosso, que costumava usar na caça às lebres, perdizes e faisões.
Um doido à solta nas cercanias era uma boa razão para praticar tiro ao alvo e justificar à mulher a pipa de massa, a enorme despesa que fazia constantemente com a caçadeira e os cartuchos.

Outro habitante, a tia Celestina, velhota de 86 anos cristalizados num corpo franzino, seco e raquítico, enrugado e retorcido como uma oliveira milenar, correu a esconder-se ao fundo do galinheiro, com a navalha do seu saudoso Jerónimo, que se fosse vivo depressa resolveria aquela questão, como fizera uma dia ao Coentros quando com este se travou de razões por causa daquela courela que o malandro reclamava como sua e que toda a gente sabia era do Jerónimo, tinha-a recebido do pai que a tomara de herança do avô.
Ai que saudades do seu Jerónimo, que agora estava em paz e descanso numa campa no cemitério da aldeia, depois de sofrer os mil tormentos do calvário da tuberculose e duma gangrena numa perna.
Encolhida no fundo do galinheiro, a tia Celestina apertou com força o cabo negro da grande navalha que mantinha sempre bem afiada e fixou o olhar no portão do quintal, mantendo-se atenta e alerta, pronta para a temível batalha.
Um demónio preto e fedorento de olhos vermelhos raiados de sangue, à solta, com o penduralho sequioso de pecado... Nossa Senhora! Nunca se sabe do que é capaz! E Deus é testemunha de que em tais casos nem as velhas são poupadas por esses mafarricos. Ela saberia defender a sua honra!

Quanto ao Zé Reco, após ter corrido ao longo da meia encosta da colina a nascente da aldeia, sempre nos mesmos propósitos, ou despropósitos, lá se cansou e acabou por parar, desengonçado pela fadiga.
Sentou-se numa grande pedra sobranceira à aldeia, colocou a galinha no chão ao seu lado, inspirou fundo e devagar, e suspirou longamente.
Um longo suspiro.
Olhou plácido os telhados do casario lá em baixo.

Lá estava a casa do João Borrega, enteado do presidente da junta, com a horta nas traseiras cheia de enormes couves, repleta de alfaces, cenoiras, nabos, e muito mais, e ao lado a do Sebastião Bagulho, com as macieiras carregadas de belos pomos a pedirem para serem comidos.
Lá estava um pouco mais ao longe a velha ponte de pedra sobre o ribeiro seco onde já não corria água, alguns doutores da capital que às vezes arribavam à aldeia diziam que a ponte era romana ou lá o que era por causa duma porcaria dumas lajes velhas.
Ao longe os pinheiros, castanheiros, bétulas e acácias balouçavam docemente. Por sobre elas viam-se esvoaçar pardais, verdelhões, andorinhas, e demais passarada.
Na rua principal, principal porque era a única e não havia outra, corria desengonçado o Tarzan, o grande cão serra da estrela do Adérito Florido. Com certeza tinha conseguido soltar-se porque estava sempre amarrado por uma grossa corrente de ferro no quintal do Adérito.

Ante aquela conhecida e amada paisagem, cheia de boas recordações dos seus tempos de moço, sentiu uma funda tristeza, uma pesada nostalgia, invadi-lo. Um punhal aguçado cravou-se no seu coração fazendo-o sangrar.

Levantou-se lentamente, espreguiçando-se ao mesmo tempo, e soltando um sonoro traque.
Baixou-se e agarrou a galinha depenada, que continuava no mesmo lugar, imóvel, ou não estivesse morta, e colocou-a de novo sob o braço.
Impulsionou o corpo e recomeçou a desvairada corrida gritando sempre.

— AQUI D'EL REI ! AQUI D'EL REI !

Numa longa e extenuante espiral desceu o monte até desembocar na aldeia, à entrada.
Parou por breves instantes para retomar o fôlego, cuspiu para o chão a saliva grossa e seca, e reatou a corrida ao longo da rua.
Não correu nem 50 metros. Dois guardas da GNR, entretanto chamada pelo pároco, interceptaram o seu percurso e forçaram a sua paragem, metendo-se à sua frente de braços abertos.
Zé Reco obedeceu à ordem de parar. Gostava muito da Guarda, tinham fardas bem bonitas, e de qualquer forma as espingardas tinham um ar ameaçador.

Os guardas agarraram-no com força pelos braços.
O cabo tirou-lhe a galinha agarrando-a pelo pescoço, olhou-a desconsolado por não a poder comer, e atirou-a sem modos nem cerimónia para a berma. Os cães vadios e os ratos tratariam dela.
O que o acompanhava, o Laurindo, filho da tia Cremilde, olhou o Zé Reco nos olhos, olhou-o fundo nos olhos e, sem querer ver viu. Viu-lhe a alma.

Viu tudo o que o Zé Reco tinha visto lá do alto e também ele sentiu de súbito ganas de se desnudar, agarrar uma galinha, depená-la, pô-la debaixo do sovaco, e começar a correr feito louco a gritar.
Mas tinha o cabo ao seu lado... o sargento e o capitão na esquadra... Deitou fora a ideia.

Com um cobertor que tinham no jipe, obrigaram o Zé Reco a cobrir-se, enquanto este chorava baba e ranho como uma criança, acometido dum inexplicável pranto, gemendo baixinho:

— AI MÃE! AI MÃEZINHA!

Cada um deles agarrou-o por um braço torcendo-os atrás das costas dele e conduziram-o para o jipes sob o olhar dos mirones, que às portas e às janelas silenciosamente assistiam à 'operação militar'.
Empurraram-o para o banco de trás, fecharam a porta, entraram na viatura, e partiram no meio duma nuvem de poeira.

Ouviu-se o Tarzan ganir lá ao longe. No seu ganido parecia que gritava:

— AQUI D'EL REI! AQUI D'EL REI!


Oeiras, 26 JUNHO 2008
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