sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

som madrugador

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esta estória foi reescrita, com poucas modificações, a partir dum original datado de 11 FEV 2005. É um exercício de non-sense e o epílogo... bem, esse fica ao critério do leitor.


SOM MADRUGADOR

Eram aproximadamente 6 h. da madrugada quando um som estrídulo e obsceno me despertou.

Acordei, transpirado e pensando que som seria aquele, tomando em simultâneo consciência de como a essência da corrupção dos mártires era premente, rápida, e ainda da forte, pungente, dor que sentia no joelho esquerdo, um pouco abaixo do menisco.

Levantei-me estremunhado e abri a boca como um cachucho esquerdista fora de água.

Olhei em torno de mim para a escuridão penumbrosa e clara, que me envolvia como um santo sudário sujo de cagadelas de mosca drosófila.

Arrotei.

É a primeira coisa que faço habitualmente quando acordo, já lá vão 43 anos.

Arroto, soltando estrepitantemente aqueles nocturnos e comprimidos gases, que o meu estômago guarda ciosamente enquanto durmo, como se de um tesouro se tratasse.

Tenho um estômago-cadela.

Por vezes, acompanho estes arrotos com puns.

Dever-lhes-ia, ao invés, chamar traques, ou mesmo peidos, visto que se caracterizam pelo rasgado estrondo que produzem, capaz de acordar do sono eterno um cadáver surdo sem orelhas nem ouvidos.

Pelo menos o meu gato acorda sempre, e uiva.

É um gato com a mania que é lobo.

Já o levei a um psico-veterinário, mas o psiquiatra suicidou-se a meio duma sessão de terapia, saltando da janela do 81º andar.

Ao que parece, porque resolveu sair e voltar a entrar no gabinete mascarado com uma pele de cordeiro, vá-se lá saber porquê, e o gato terá convencido o sujeito de que ele era o cordeiro de Deus e que tinha asinhas nas costas e podia voar.

Voou, voou, em voo picado direitinho aos paralelepípedos!

Olhei em volta e pensei de novo que som teria sido aquele que me despertara do merecido descanso deste pobre pecador.

Busquei no fundo da minha memória auditiva, mas nada se acercava da superfície, nada emergia, nada que me desse uma pista que me permitisse identificar o som.

Caguei no assunto.

Assim como assim, estava acordado e já nada havia a fazer.

Não consigo readormecer após acordar.

Tenho no mínimo que deixar passar umas boas 22 horas até que o sono volte de novo.

O melhor era aproveitar o dia.

Ou noite, não sabia que horas eram e não me apetecia ir ver ao relógio que tenho dentro da arca congeladora por cima da garrafeira.

Fui à casa de banho e tratei da minha higiene.

Rapei a barba;

Lavei os olhos, tirando cuidadosamente as ramelas, juntando-as num montinho, amiguinhas coladinhas umas às outras, sobre o manípulo da torneira;

Meti três vezes o mínimo nas narinas para tirar os burriés, que também juntei num montinho no manípulo da outra torneira;

Com uma pequena pinça arranquei os pêlos que saíam do nariz e das orelhas, vieram-me as lágrimas aos olhos, é bom chorar pela manhã;

Lavei os quatro dentes que ainda me sobram do antigamente;

Coloquei as próteses dentárias, que dormiam docemente mergulhadas no seu copinho de água com pastilhas desinfectantes;

Sentei-me no bidé e lavei as partes, pois não me apetecia tomar banho de chuveiro;

Enxuguei com a toalha manchada de humidade tudo o que ainda estava molhado, e voltei para o quarto para me vestir.

Vesti-me rapidamente.

Era verão e não havia muita roupa para vestir.

Lembrei-me de novo do som que me tinha acordado.

Esqueci-o outra vez.

Tinha mais que fazer.

Decidi sair de casa.

Dirigi-me à porta, abri-a e saí para o patamar.

Parei frente à porta do elevador e chamei-o, com um potente grito:

— ELEVADOOOOOR!!

O gajo demorou um pouco a aparecer.

A porta abriu-se à minha frente e dela saiu um enorme e possante negro que olhou para mim e disse:

— Chamou, chefe?

— Chamei, chamei! E 'tava a ver que nunca mais aparecias!

O negro acocorou-se e subi-lhe para as cavalitas, segurando-me com força à sua carapinha suja e encardida.

— Leva-me ao 54º andar.

O negro lançou-se em enormes passadas pelos degraus acima, estávamos no 23º, agarrando-se com as mãos aos corrimãos que ladeavam os degraus.

Chegámos.

Desci para o chão e o negro abriu a porta do elevador e desapareceu a acorrer a outra chamada.

Olhei à volta do patamar.

15 portas igualzinhas, em metal cinzento, alinhavam-se pelas paredes fora, tal como no meu andar.

Dirigi-me à 9ª a contar da esquerda e pressionei o botão da campainha.

— Quem é? — disse uma voz feminina e ensonada do interior.

— É o caralho que ta foda! — respondi em tom grosseiro — Abre lá a merda da porta, porra!

— Ai és tu! — identificou-me facilmente, claro.

Ouvi os mecanismos de segurança praguejarem e roncarem quando ela os passou a estado off.

A porta abriu-se e ela surgiu à minha frente em todo o esplendor dos seus 46 anos.

Estava nua, e as suas glabras escamas rebrilhavam à luz difusa do patamar.

Fez-me sinal para que entrasse, o que fiz de imediato.

Fechou a porta atrás de mim e disse:

— Então o que te traz por cá, romeiro, a estas horas da madrugada? Levantei-me agora mesmo.

Olhei os seus olhos vesgos, amarelos como limão, e respondi:

— Um filho da puta dum som! Não o ouviste?!

— Não, não ouvi nada, até teres tocado à campainha. Mas... já que aqui estás, aproveita e toma o pequeno-almoço comigo — respondeu persuasiva.

— Estás sozinha? — perguntei-lhe com ar de quem já sabia a resposta.

— Como de costume, meu tonto! — disse com um sorrizinho brejeiro desdentado.

Acompanhei-a até à cozinha, seguindo-a e observando lascivamente o seu intrépido traseiro, poderoso como uma betoneira.

O cheiro do café acabado de fazer penetrou-me as narinas, acabadinhas de depilar, e encheu-me de desejo.

— Queres uma torrada? — questionou, apesar de conhecer de antemão qual seria a minha resposta.

— Quero 26 torradas, se não te der muito trabalho. — disse eu, súbita e inexplicavelmente um pouco acanhado.

— ... T'balho nenhum!

Pôs as torradas, uma travessa com 70 cm de ponta a ponta cheia de torradas pretas, o bidão de café e duas malgas sobre a mesa e sentou-se ao pé de mim.

— Conta-me lá essa história do som. — disse-me, ao mesmo tempo que esfregava uma torrada cheia de manteiga rançosa derretida na orelha direita, pingando o ombro nu, e metia o queixo na malga de café fervente e fumegante.

— Oh pá, estava a dormir e acordei por causa de um som qualquer que não sei o que era. Como já não conseguiria dormir, levantei-me, lavei-me, vesti-me, subi e estou aqui. É tudo. The end.

— Que raio de coisa...! — exclamou franzindo o sobrolho.

Estávamos neste construtivo debate, esfregando as torradas quentinhas e amanteigadas nas nossas orelhas e mergulhando os nossos queixos no café negro e fervente, quando atrás de nós, aparentemente vindo da sala, se ouviu um som horripilante, estridente, como de metal contra metal a chiar.

Olhámo-nos atónitos e levantámo-nos assustados.

Vi-a tremer como uma gelatina.


— CUM CAMANDRO! — proferimos em uníssono.

Dirigimo-nos pé ante pé, o mais silenciosamente que se consegue sobre joelhos bambos, na direcção da porta da sala para espreitarmos.

Lentamente, movemo-nos, ela atrás de mim, nas minhas costas, a proteger o seu corpo com o meu e a espreitar sobre o meu ombro.

Não chegámos à porta da sala.

Nem sequer a meio do caminho.


Oeiras, Dezembro 2007
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2 comentários:

madalena disse...

Eu quero saber o resto!
Falta o fim!
Ohhhh!
Estava a apreciar e… THE END!
Lá terei eu de o adivinhar! O fim, claro! Ou inventar!

Seu maroto desaparecido!

DESCUBRI-TE!!! O ZÉTÓ!!!
A vida tem destas coisas!
E lá vamos nós a passear por este mundo, e acabando por retornar ao início da viagem de há já mais de 24 anos!
Perco os amigos, os conhecidos e… quase não conheço ninguém!
Estou na Parede!
Quase cá nascida,... fui e voltei! Mais velha e alguma bagagem pesada ás costas, mas… Não me tornei corcunda, apenas risonha!
Beijinhos da tua sempre amiga e que quer tomar um cafézinho contigo nos "QUEQUES" com o Correia?!
Queres, queres? Só podes responder "SIMMMMMM"

Jinhos
Madalena Sampaio
mmnpmss@hotmail.com

Unknown disse...

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ORA ESTA, QUEM HAVIA DE DIZER ??????????? A MADALENA !!!!!!!

Estás bem moça ? Espero que sim.
Como diz uma amiga minha: "Portugal são 3 ruas"...
E esta blogosfera é um mundo bem pequeno. Oh, oh, se é...

Claro que quero tomar um café, para pormos a escrita em dia. Só temos que combinar o dia e a hora.

Não sei se vais ler isto por isso vou enviar-te um email.

bjs,
zétó