sexta-feira, 18 de janeiro de 2008

atrasado, nunca !

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Este instante foi escrevinhado tecla a tecla, letrinha a letrinha, numa monótona tarde de quarta-feira, em 17 de Outubro de 2001. Reli-o e reescrevi-o agora, para vosso divertimento.


ATRASADO, NUNCA !

Levantou-se cedo, à hora habitual. Era um ser muito metódico, disciplinado, rigoroso e regular no modus vivendi. Funcionava quase como uma máquina. Podia dizer-se dele, sem correr o risco de exagerar, que a sua vida era um tiquetaque cadenciado. Podia acertar-se o relógio por ele, como se fora um pequeno kant moderno.
Abriu os olhos meio vesgos e afastou o edredão para o lado, pôs os pés ossudos fora da cama e içou o tronco energicamente num baloiço estudado. Atirou as pernas de gafanhoto pelo ar numa rotação perfeita e ficou sentado na borda da cama.
Logo de seguida esticou os braços magricelas, brancos e escanzelados, e espreguiçou-se como um cristo, soltando um grande bocejo.
Piscou os olhos cinzentos com a intensidade da luz diurna e arrastando as pantufas pelo soalho de tacos envernizados foi até à janela como de costume, ver como estava o dia. Tinha um minuto para o fazer.
Os manda-chuvas tinham dito na televisão, na véspera, que iria ser um belo e aprazível dia de sol e calor, bom para a praia.
Praia, pois, pois... para quem não tem que trabalhar! — Pensou.

Veranear era um luxo a que não se podia permitir. Nem nas férias, as quais aproveitava para pôr em ordem a muita papelada e os assuntos pendentes relacionados com a casa, entre outros.
Ao longo do ano guardava certas tarefas precisamente para o período das férias, para que elas não interferissem com a sua rotina diária. Coisas como arquivar facturas, cartas e documentos variados, realizar pequenas obras em casa, pôr uma prateleira aqui, trocar um interruptor ou tomada ali, trocar alguma peça de mobília velha ou electrodoméstico por outro novo, etc. Pequenas coisas que tornavam a sua casa habitável e ao seu gosto durante mais um ano até às férias seguintes.

Pela janela do quarto, olhou para fora, para a rua três pisos mais abaixo. Uma rua normalíssima e igual a muitas outras, diferindo apenas no pormenor de ao contrário do habitual ter passeios muito largos, um deles com talvez uns 10 metros, o que dava à rua uma largura de cerca de 22 metros, e isto tinha como consequência, agradável, os prédios de ambos os lados distarem muito uns dos outros, evitando a comum invasão de privacidade que ocorre em ruas estreitas, nas quais o vizinho da frente facilmente nos 'entra pela casa adentro' através das janelas.
Esperava ver o costumeiro cenário de uma 2.ª Feira: gente apressada na direcção dos carros, estacionados nos parques, nos passeios, por todo o lado; carros a buzinar e camionetas repletas de passageiros passando velozes, como dardos lançados pelo ar na direcção de um alvo invisível; mães a puxarem pelo braço crianças sonolentas e cambaleantes; maridos a gritarem para as esposas "Despacha-te, porra!". Mas não!
O que viu gelou-lhe o corpo e o espírito. Paralisou-o. Sentiu-se como se de súbito o tivessem transportado, completamente nu, para o interior dum armazém frigorífico ou para a Antártida.

Lá em baixo, vagas gigantes levantavam-se fustigando as paredes dos prédios com estrondo e enchendo o ar de espuma densa e escura.
Toda a rua estava transformada num mar. Água escura, suja e lodosa, vinda não sabia de onde, porque não tinha sequer chovido, enchia a rua à altura das janelas dos primeiros andares dos prédios. Destroços, móveis e toda a espécie de objectos acompanhavam os corpos meio despidos, muitos em pijama ou camisa de noite, outros nus, que saiam pelas portas e janelas, revolteando nas ondas castanhas como bonecos de trapo.
Ouvia-se gente gritar de terror às janelas dos andares mais altos que, como o dele, tinham escapado àquela inaudita hecatombe.
Enquanto, literalmente siderado, assistia a este trágico e impossível espectáculo, incapaz de o racionalizar e compreender, ouviu um ronco forte troar no ar reverberando nas paredes dos edifícios. Assustou-se e estremeceu, apesar do som não lhe ser estranho e ter algo de familiar.
Estendeu a cabeça para fora da janela e olhou para o fundo da rua, na direcção de onde lhe parecia ter vindo o som.

Um imponente cacilheiro fumegando da chaminé, deixava uma gigante nuvem negra atrás de si e entrava na rua vindo de uma outra perpendicular, roçagando com esforço gemente o casco nas esquinas e paredes dos prédios, arrastando à sua frente, afastando-os com a negra e possante proa, destroços flutuantes, contentores de lixo, carros, caixotes, detritos, cadáveres de gente afogada que continuavam a sair pelas aberturas dos andares mais baixos, completamente inundados, e aproximava-se pesadamente do seu prédio.
Pensou rapidamente, apelando à sua lógica de sobrevivência apreendida ao longo dos anos: Não os podes vencer junta-te a eles!

E num rompante vestiu a roupa que tinha ali à mão, sem se preocupar com as lavagens matinais, pegou na pasta cinzenta de plástico a imitar pele de cobra e correu escada abaixo para apanhar aquele oportuno transporte e não chegar atrasado ao emprego!


Oeiras, Janeiro 2008
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2 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Adoro estes teus contos!

Obrigada.



bj

I.


o scriptum: Um 'handy'man' como o da estória faz-me imensa falta cá em casa, principalmente para arrumar a papelada. Dás-me o contacto? :)

Unknown disse...

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Olá Isabel,

Fico feliz por gostares.

Quanto ao 'handy', vou ver se ele tem umas horitas livres - com tanto que há para fazer cá em casa... :)

Obrigado pela visita.

bjs

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