sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

uma ponte

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Esta estória foi escrita às 02:05 h. do dia 10 de Outubro de 2002.
Tem uma particularidade que talvez já tenham observado noutras prosas. Uso algum vocabulário que escusam de procurar no dicionário porque... não existe! não existia? antes de eu o usar?!
A razão é simples. O que me agrada na escrita é também e muito a sua sonoridade, e sabemos que quando se lê, 'ouvimos' o som das palavras dentro da nossa cabeça.
Essa é uma das coisas belas da Língua Portuguesa. A sua musicalidade. A sua sonoridade. O fraseado, que transmite sentimentos e emoções. A forma como as palavras cantam, gritam, suspiram ou murmuram aos nossos ouvidos, como ressoam no nosso espírito.
Muitas vezes 'atrevo-me' à invenção de palavras, pelas razões expostas. Mesmo para traduzir conceitos para os quais existe já vocabulário.
Mas quando essas palavras não me agradam por algum motivo (sonoridade, p.ex.) invento outras. Às vezes simplesmente grafando palavras já existentes com uma outra grafia ou fazendo transmutações, colagens, trocadilhos, etc., que geram palavras novas que pela sua sonoridade me são agradáveis e que traduzem o conceito que quero transmitir.
É assim que aqui aparecem palavras como: ordenador (computador), extranet (Internet cósmica), emaranhantes (que emaranham) ou estremudo (brincadeira elaborada a partir do verso da canção Vampiros de Zeca Afonso, na qual se diz "sob o astro mudo", mas que a mim sempre me soou como 'sob o ar estremudo'; adoptei este vocábulo como sinónimo de cinzento, escuro, nebuloso, pesado, sinistro, e gosto imenso dele).
Mas vamos à estória:


UMA PONTE

Acordou, com a brusquidão de uma explosão. Estremeceu e abriu os olhos estremunhado, rameloso. Olhou o tecto claro manchado de nicotina e cagadelas de mosca, à sua frente. Na claridade do dia, imaginou. Mas não. Tudo continuava na mesma. A nostalgia gritava e urrava nos cones altifalantes da sala. Não havia nada de novo, pelo menos que se visse.

Espreguiçou os corninhos e ajeitou a concha listada e surrada que libertou alguns flocos de cotão. Calçou um sapato roto, a pedir meia-sola, por sobre a peúga branca. Com um arrepio, os pêlos da nuca eriçaram-se. Uma imensa galáxia tinha colapsado num buraco negro, algures a anos-luz. Ou seriam dias? Ao longe, alguém cantava um fado. Um velho fado da Amália. Tábuas de caixão e coisas que tais. Havia um bote a ondular no rio. Um bote vazio, só tábuas molhadas cheirando a mofo. Foi até à janela. Passavam alguns carros auto móveis, conduzidos por lesmas peçonhentas. Algumas de olhos e lábios pintados. Eram umas putas!

Voltou-se lentamente. Foi até ao ordenador e, pela extranet, ligou-se com Deus. Havia no éter um odor intenso a alfazema. O momento convidava à meditação. E à inquisição... Os monges arrastavam-se numa lentidão estudada em bicha de pirilau. Cada um fixando as costas daquele que o precedia e expondo as suas próprias àquele que o seguia. O fogo ardia purificante. Fogo fátuo. A cruz era imensa e pesava. Retorcia-se milenar como um velho carvalho. Havia anjos no ar.
Mas eram pretos, os cabrões! Olhos de fogo em rostos de carvões. Alguns, poucos, eram brancos como neve. E estavam com erecção. O sexo dos anjos é masculino.


No lajedo os calos doíam. As sombras eram poucas e o chão fervia debaixo da fornalha solar. A vida e a morte eram indistintas uma da outra. O mundo avermelhou e as aves calaram-se. Imobilidade, intemporalidade. Um clique! E a pantalha enegreceu. Temporariamente? Olhou em torno de si mesmo. Afinal, estava no centro do universo para quê? O infinito; a eternidade; visivelmente, sentia-os na pele rugosa, tisnada. Era uma sensação estranha. Quente e doce.
Deslocou-se com dificuldade.


Havia um mar de águas lodosas e negras. Águas densas de emaranhantes plantas vivas, pegajosas. Cheias de enormes lagartos púrpura revirando os olhos, retorcendo as escamas. Os edifícios elevavam-se, imensos, arranhando o céu.
Toneladas de vidro reflectindo o céu cinzento e o ar estremudo. A jangada de madeiras velhas balouçava suavemente. Gemia... Assim como gemia o gato negro. Acercava-se da beira; olhava tristemente o lodo; regressava ao centro da jangada. Esperava. O monge olhou fixamente, uma vez mais, o horizonte longínquo. O seu rosto era uma calote hemisférica que reflectia o sol. Havia uma ponte.

Uma longa ponte de pedra granítica. Uma ponte sobre o quê?

Oeiras, Outubro 2002
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