sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

o velho cais de madeira

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O VELHO CAIS DE MADEIRA

Os contentores frigoríficos de plástico branco e fechos metálicos, assinalados com símbolos vermelhos, amontoavam-se a um canto do velho cais de madeira junto de uma pequena barraca de chapa enferrujada, aparentemente abandonados.

O cais bordejava um pequeno e estreito, mas profundo, rio de águas escuras, lodosas. Um rio que ninguém sabia onde começava ou acabava. Ninguém sabia de onde vinham e para onde seguiam aquelas águas. Águas que nunca paravam de correr e mantinham sempre a mesma altura. Também nunca ninguém tentara saber de onde e para onde corriam. Apenas sabiam, e isso bastava-lhes, que o rio passava ali. E por isso, um dia um presidente da junta, cujo nome entretanto caira no esquecimento, mandara um grupo de operários com boas ferramentas construir aquele cais. Houvera festa, fora um acontecimento. O presidente discursara, a mulher do presidente chorara, a amante do presidente desmaiara, o povo aplaudira e embebedara-se. Deitaram foguetes e tudo!

De início, enquanto fora novo, o cais era local de romaria. Vinham-se sentar nele para entardecerem a ver passar a água. Ficavam longas tardes sentados na borda, pés descalços a balouçar, olhando hipnotizados a corrente esverdeada que fluía. Os garotos tinham mesmo inventado uma estória na qual acreditavam cega e piamente e que nem o brutamontes do chefe da guarda se atrevia a contestar: rapaz que, à meia-noite, na terceira noite de lua cheia a contar a partir do primeiro equinócio, esfregasse a cabeça da pila na sétima tábua do cais a contar da borda, nunca perderia a virilidade por mais anos que vivesse. E era vê-los! A garotada toda de pila de fora a esfregar, esfregar...

Nunca nenhuma embarcação tinha sido vista a acostar ao cais. Ou sequer a passar no rio. Eles próprios não tinham barcos nem nada que se parecesse com tal e permitisse navegar. Os únicos veículos de que dispunham eram alguns carros de madeira e fibrocimento, motorizados com motores eléctricos alimentados a baterias solares para o dia e baterias lunares para a noite. Em dias nublados recorriam aos pedais. Era nestes veículos que se transportavam e faziam transportar cargas e bagagens. Podiam nunca ter visto uma embarcação no cais, mas a verdade é que se queriam despachar alguma mercadoria levavam-na até ao cais, descarregavam-na disciplinadamente, arrumavam-na cautelosamente, preenchiam criteriosamente os documentos de despacho e no dia seguinte a mercadoria já lá não estava. Não achavam estranho. Afinal o cais estava lá para isso mesmo.

Entretanto o tempo tinha passado, o cais envelhecido. As águas corroeram os pilares enlaçados pelos limos, a barraca de folha de flandres novinha ganhou um melanoma e acastanhou, primeiro em pintinhas dispersas, depois em grandes manchas que alastraram por toda a superfície. Nas suas paredes apareceram alguns buracos. No próprio tabuado tinham aparecido fendas e era agora possível, nalguns sítios, ver a água correr lá por baixo. A famosa sétima tábua tinha-se despregado e desaparecera, talvez tragada e levada pela corrente.

Aqueles contentores eram talvez a última mercadoria, a última carga que ali tinha sido colocada para despacho. Alguns estavam rebentados, por descuido na descarga. O seu conteúdo espalhava-se pelo chão de madeira à sua volta. Braços, mãos, pés, pernas, dedos, frutos de amputações, uns brancos caucasianos, outros mais escuros, morenos, outros sem dúvida negróides, todos eles indubitavelmente humanos. Era possível perceber que alguns daqueles membros eram de homens e outros de mulheres, sendo todos eles de pessoas jovens. O que se tornava difícil perceber era a sua origem e o seu destino.

Também ninguém estava preocupado com isso. Quando chegasse a altura o seu dono apareceria para os reclamar e levar. Apareciam sempre. Sempre tinha sido assim. Portanto, eles ali estavam no velho cais de madeira, velho local de chegada e de partida mas sobretudo velho local de esperança para aqueles que o utilizavam.


Oeiras, 10 Outubro 2002
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