sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

sete voltas

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SETE VOLTAS

Estava um gélido frio de rachar naquela noite escura negra talhada em ébano nevoenta e triste de Setembro, prenúncio de folhas caídas nas calçadas, empedrados de pequeninas pedras calcárias brancas diligentemente colocadas nos passeios por calceteiros de mãos calejadas pagos pela autarquia patrocinadora de familiares emigrados que a oposição acusava de corrupta, quando na areia da praia sempre, a do costume de todos os dias que outra não havia, onde eu vagueava de mãos nos bolsos como um tonto à falta d'outra ocupação, me cruzei com ela.
Sorriu quando passou por mim embrulhada num blusão espesso em cujos bolsos escondia as mãos que eu adivinhava promissoras quando na agitação do gozo nocturno a dois. Os seus maravilhosos dentes brancos duma regularidade delfínica rebrilharam e reluziram à luz da Lua.
Senti-me entontecer, faltou-me o líquido rubro anímico e vital no cérebro, o chão fugiu por breves instantes debaixo das minhas palmilhas podres, e correspondi-lhe, ofertando-lhe o meu melhor sorriso com a minha boca desdentada que mais se assemelhava ao esgar da boca de um xarroco fora de água e mergulhado em ácido sulfúrico.
Continuou o seu caminho em direcção a um algures que só ela sabia onde, em passo ligeiro levantando pequenas nuvenzinhas de areia.
Eu fiz o mesmo, num passo pesado de camionista beirão ébrio que procura o vomitorium.

De súbito senti uma terrível vontade de me dirigir à tasca do Jacinto Picareta.
Senti-me com fome. Não aquela fome vulgar que temos a toda a hora em que nos assola o apetite e o desejo de dar umas trincas em qualquer coisa, mas aquela fome que provoca uma dor lancinante no ventre e nos leva a comer paus e pedras...
Tinha que ir à tasca! Assim fiz e lá chegado, depois de me sentar numa cadeira frente a uma mesa de pau, forrada com uma toalha de plástico com bonitas mimosas impressas, presa ao redor do bordo com pioneses já enferrujados do muito vinho em que diariamente se banhavam, regalei-me com uma travessa de batatas fritas em palitos mergulhadas em toneladas de sal grosso. Não das congeladas, de plástico, mas das verdadeiras, batatas mesmo, pómas-da-terre como diz um primo meu emigrante em França que sabe falar francês como nem os franceses sabem, descascadas e cortadas à mão com uma faca de gume bem afiado por mãos diligentes. Acompanhei-as duma tacinha de tinto do barril. Sim, que não vou em modernices...

Apenas uma coisa me incomodou. O ter tido que pedir o paliteiro para palitar os dentes antes de pagar e me vir embora. Tinha-me esquecido dos palitos em casa. Ando sempre munido com uma meia dúzia deles, embrulhada em papel celofane azul, para as emergências. Mas esquecera-me completamente de os meter no bolso.
Não são uns palitos quaisquer! São feitos por mim mesmo, a partir de pauzinhos que apanho do chão, como paus de fósforo, paus de gelado e gravetos, e que descasco e afio com um canivete que achei num contentor do lixo.
É um canivete bem baril de que nunca me separo. Tem desenhada no cabo, ou pintada ou estampada, sei lá, uma fotografia duma gaja toda nua! Uma gaja branca, branquinha, como as artistas de cinema! Até dá calores apertá-lo na mão!
Um dia também achei um bocado partido duma pedra de amolar, ao lado dum cagalhão dum cão, no jardim. Não sei o que é que ele estava a fazer ali, não o cagalhão mas o pedaço de pedra, claro, mas é com ele que amolo o fio do meu canivete, que até dá para fazer a barba!

Saí da tasca. Arrotei o vinho. Invulgarmente soube-me um pouco a azedo, Estava escuro como breu, ainda a noite era uma criança, e tinha começado a pingar fininho. A merda da chuva caía miudinha alfinetando em cima da minha tola. Não me preocuparia se eu tivesse guarda-chuva. Mas o subsídio de desemprego do mês passado tinha ido para substituir o colchão de palha da cama e o que sobrara apenas dera para comprar um garrafão de vinho, depois de pagar o quarto à D. Augustina. Este mês estava nas lonas, como aliás todos os meses.
Raios parta o povo, que insistira em votar para o governo um gajo que nem estudos tinha e que era um cínico com nome de filósofo pedófilo! Agora estamos todos a pagá-las! E eu que nem tinha votado, porque quando me disseram que se punha o voto nas urnas, decidi logo não pôr lá os butes. Tenho muito medo da morte. Borro-me todo só de pensar!
Mas nada disto ia fazer desaparecer a chuva que aumentava de intensidade.

Levantei o mais possível a gola da encardida e puída gabardina bege que um amigo, o Cândido, que já não a queria usar, me tinha dado de presente de aniversário, num belo embrulho feito com os restos do papelão duma saca de cimento e com um laçarote feito com um pedaço de serapilheira desfiada. Tenho bons amigos que nunca deitam fora a roupa e o calçado quando já está gasto. Oferecem-mos de presente em ocasiões especiais!
Andei vagarosamente, evitando as poças de água, pois os sapatos com a sola esburacada que tinha calçados, se pisasse uma delas, seriam inúteis e equiparavam-se a trazer calçadas duas esponjas.
Tinha que esperar que algum amigo, talvez o Laurindo, se desfizesse dumas botas e mas oferecesse. Talvez nos meus anos.

Sem rumo, como era meu costume, quando dei por mim encontrava-me no centro da Vila. O silêncio era quase absoluto. Não se via vivalma. Apenas um gato vadio teimava em tentar abrir um saco de lixo. Certamente em busca de alguma postinha de bacalhau que tivesse sobrado do jantar de alguém mais abastado.
Dei sete voltas à praça. Sou supersticioso e tinha aprendido com uma velha vendedeira de castanhas que quando se passeia numa praça se deve sempre dar sete voltas à mesma, pela direita, para não termos azar para o resto da vida e, se nos enganarmos, temos que voltar ao princípio e recomeçar as voltas.
Nunca percebi o porquê, até porque, apesar de dar sempre sete voltas fosse ao que fosse, nunca a minha sorte mudou. E a da velha também não. Tinha morrido atropelada por um camião do lixo ao sair à rua para ir apanhar uma peça de roupa, acho que um par de cuecas do marido, que caíra e voara do estendal.
Uma mulher toxicodependente com quem vivi durante cinco dias, por exemplo, para verem como a minha sorte não mudava. Sempre que dávamos a queca, fazíamos sete posições diferentes e nos intervalos dávamos sete voltas à barraca. Isso não me trouxe sorte nenhuma. A única coisa que nessa altura mudou na minha vida foi uma camada de chatos e um esquentamento...

Tinha acabado a sétima volta ao largo quando, de súbito, a vi de novo. Estaquei bruscamente.
Era ela sem dúvida. A mulher da praia, a do sorriso lunar. Ainda envolvida no mesmo blusão grosso, caminhava lesta através da praça cruzando-a em diagonal.
Ai Jesus! Ocorreu-me de súbito o perigo que isso poderia representar para ela, ocorreu-me falar-lhe nas sete voltas e recomendar-lhas. Acelerei o passo na sua direcção, recordando o seu simpático sorriso que me incitava a fazer algo por ela. Lembrei-me da velha das castanhas. Até me pareceu ver a cara dela à minha frente a olhar-me com um ar estranho, recortada contra as paredes escuras dos edifícios.
O camião do lixo bem guinchou no esforço de travar no asfalto molhado... mas não. Se a minha noite já estava escura a escuridão adensou-se ainda mais.


Oeiras, 22 Fevereiro 2008
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2 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Fiquei uns segundos largos a ouvir 'o guincho do camião do lixo no esforço de travar no asfalto molhado...'



Deixo-te um abraço

I.

Unknown disse...

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Olá Isabel,

Um som bastante familiar a quem costume estar acordado às 2 e 3 da madrugada... :)

bjs

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