sexta-feira, 8 de fevereiro de 2008

atracção

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O original deste curto instante foi escrito em 28 de Outubro de 2002 e tinha como título original "Velho Navio Velha Puta", e era apenas um esboço, um apontamento, a pedir para ser trabalhado. Apresento-o agora numa versão com maior desenvolvimento.


ATRACÇÃO

Havia naquele lugar cinzento e sombrio um velho muito velho e exaurido cais daqueles onde se chega e donde se parte. Às vezes parte-se chega-se.
Havia naquele lúgubre cais um velho velhíssimo e decrépito navio. Um barco que chegara há muito. Há tanto que ninguém o sabia dizer. Já não havia pessoa viva que se recordasse da chegada. Parecia que ele sempre estivera ali. E quem sabe se não se sim? Talvez o cais só tivesse sido construído depois da chegada do navio para aplacar a tristeza daqueles que ali o viam amarrado ao nada fundeado no vazio. Há construtores de cais assim com tal feitio e imaginação.
O ancoradouro era um velho cais de madeira gasta e encardida com muitas tábuas já podres e muitas outras soltas.
A embarcação era um velho navio de ferro sujo esclerosado e oleoso.

O velho cais de madeira estava cravejado de fundas cavilhas de ferro. Enormes pregos de cabeça castanha enferrujada que se esforçavam gloriosamente em segurar as tábuas teimosas em resistir. Manchas negras gordurosas e de origem desconhecida e indeterminada esparramavam-se pelo tabuado como uma doença de pele num idoso.
O velho navio de ferro tinha os espessos costados cravejados de redondos e viris rebites de aço. Milhares de cabecitas redondinhas bem alinhadas ao longo dos bordos das grossas e gordas placas de ferro com a pintura gasta e escamada como a de um lagarto gigante à espera do fim.

Adoçando o navio as águas lodosas bafientas corriam plácidas imparáveis arrastando detritos de montante.
Mas apesar da calma com que devinham as águas a velha puta enjorcada e esfarrapada que deambulava no cais - no navio? - não as conseguia acompanhar.
As ratas mortas pretas inchadas e fedorentas que flutuavam de pança para cima à tona d'água deslocavam-se bastante mais rápido que a rata viva relaxada e malcheirosa abaixo da enorme pança da puta que deambulava para trás e para a frente num vaivém sinistro nas tábuas ferrosas com passo vacilante trôpego com odores a álcool.

O navio mantinha-se quase imóvel. Apenas um ligeiro muito leve quase imperceptível ondear para cima e para baixo revelava a sua tensão o temo o terror e o seu desejo e impulso fóbico de partir.
A sua origem era clara apesar da escuridão da noite sem luar nem estrelas.
A foice e o martelo no pavilhão rubro eram inconfundíveis. Iniludíveis.
Era um navio perdido. Sem destino. Sem rumo. Sem porto de abrigo.

Por isso a atracção mútua entre o navio e a velha puta. Putas velhas que ambos eram afinal!


Oeiras, Fevereiro 2008
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