sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

o telefone glutão

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Esta estória foi escrita em 1999. É uma tentativa de fundir o humor negro com o non-sense, dois estilos que me são caros.


O TELEFONE GLUTÃO

A campainha do antiquado telefone negro soou estrídula na entrada do Instituto.
Este era num velho edifício fin de siècle com um hall amplo abrindo numa larga escadaria de madeira, com belos corrimãos escuros envernizados, lajeado a mármore preto e branco e contornado por altas paredes de estuque decoradas com pinturas trompe-l’oeil, de traço rigoroso a imitar outros mármores, coloridos.
Devido à imensidão do hall o toque soou, ressoou, ecoou profundamente, penetrando em todos os buracos, fendas, ranhuras e gretas da construção. Invaginou-se na estrutura do edifício como um fluído. Era impossível não o ouvir.

O homem de camisa, engravatado, sentado à secretária sobre a qual estava o telefone, deu um pulo com o susto. Concentrado no seu trabalho, interrompeu o que estava a fazer, pousou à sua frente a caneta com a qual estava a escrever e estendeu a mão para o telefone. Levantou o negro auscultador e levando-o à orelha atendeu:
— Estou sim?!
Falava parando de vez em quando para ouvir a pessoa do outro lado. Por vezes esbracejava com o braço livre, agitado, e subia a voz. A discussão engrossou. O homem agitava-se imenso e soerguia-se, por vezes, com a raiva. Já gritava, cuspindo gafanhotos, saltando na cadeira, cujas pernas guinchavam com gritos estridentes no mármore do lajedo como se alguém estivesse a riscar com giz uma lousa. Era tal a distracção do homem com a discussão que estava a travar que não se apercebeu do que começava a acontecer.

O negro auscultador agarrou-se ao seu rosto pela orelha com força como um parasita e o homem sentiu que a sua cabeça estava a ser sugada para dentro do telefone, o que obviamente lhe pareceu impossível. Gritou:
— Que merda é esta?!
Mas não havia dúvida de que se sentia a ser puxado para dentro do auscultador. O seu rosto contraiu-se e contorceu-se. Transformou-se numa máscara de horror. Urrando, gemendo e insultando, com a dor estampada no rosto, agarrou o auscultador com as duas mãos procurando arrancá-lo da cara e impedi-lo de o sorver. Mas este, qual monstro saído de um mundo de terror sorvia, chupava com cada vez mais força. Com tanta força que o homem, num esgar, sentiu o tímpano rasgar-se explodindo dentro do seu ouvido:
— Aaaai!
Um fio de sangue escorreu-lhe para o lóbulo. Como uma serpente o auscultador inchou e envolveu a cabeça do homem. Este caiu de bruços sobre a secretária contorcendo-se e esperneando. A pouco e pouco a cabeça do homem desapareceu dentro do auscultador até ao pescoço. O homem debateu-se ainda um pouco no seu sufoco e com violência esticou os braços e as pernas, ficando bruscamente imóvel. O auscultador continuou a chupar e a pouco e pouco todo o resto do corpo desapareceu como que engolido por uma jibóia.

Fez-se silêncio absoluto e o auscultador ali ficou pendurado a tocar o chão. Até que um empregado também de camisa e engravatado, que por ali passou, parou. Olhou em redor à procura do colega e não vendo ninguém, com um encolher de ombros inclinou-se, pegou no auscultador e levantou-o. Ia levá-lo à orelha para ouvir, hesitou e recolocou o auscultador negro no descanso, afastando-se em largas passadas. Não tinha ainda percorrido meia dúzia de metros quando a campainha do telefone, atrás de si, soou. Parou, voltou-se e olhou para o telefone, que continuava a tocar num apelo desesperado. Pensou em cagar no assunto, até porque tinha mais para fazer. Mas nunca se sabe da importância de uma chamada até a atendermos. Voltou atrás e dirigiu-se à secretária. Deitou a mão ao auscultador e levou-o à orelha:
— Está lá!?...


Oeiras, 19 Novembro 1999
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4 comentários:

H. Sousa disse...

Eh, pá! Os comentários aqui andam um pouco escondidos. E esse livro de contos é para quando?
Abraços

Unknown disse...

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Caro Henrique,

Sobre a moderação de comentários, é verdade...
Pelas tristes razões que expus no post "porque este mundo está cheio de mentecaptos..." de 12 de Dezembro de 2007.

Na hipótese de que tenha havido alteração da situação, removi a moderação. A ver vamos...

Quanto ao livro, não tenho previsão alguma.
Preciso de tempo para pensar no assunto. Tempo que não tem havido.
Mesmo para escrever o tempo escasseia.
Mas ainda não perdi a esperança. :)

Abraço

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Isabel Magalhães disse...

..........e?

Não me digas que o telefone tb sugou o segundo! :)))



Abração.
I.

Unknown disse...

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Isabel,

e... parece que foi isso que aconteceu ! AH AH AH

Há telefones antropófagos e, ainda por cima, cada vez mais as pessoas deixam que eles as devorem...

bjs

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