sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

o cota

.
O COTA

Era velho. Apenas um velho. Carcomido pelo tempo e alquebrado pela semi-vida. Tez escura, tisnada dos muitos sóis, gretada e enrugada por muitas luas. As suas mãos eram talhadas em madeira nodosa e o seu rosto rasgado com um gume afiado. A sua face de papiro era abraçada e emoldurada por farta, doce e comprida neve ondulada. Percebia-se também que tempos idos o seu corpo tinha sido talhado num bloco de granito. Todos os miúdos, todos os moços, todos os jovens, mesmo todos os adultos, a ele se referiam pelo cota.
Já nem ele próprio sabia a idade que tinha. Nem se ainda tinha idade. Sabia que tinha nascido há muito, muito, muito tempo. Quando havia tempo. Pois lembrava-se...


Lembrava-se de andar de calções a jogar ao pião com os parceiros da escola no adro da igreja na aldeia. lá no alto da serra. onde moram os velozes e faiscantes falcões, as matreiras raposas pilha-galinhas e os temíveis lobos carniceiros... do sussurro das asas das andorinhas, pardais, verdelhões, tentilhões, canários, cucos, melros, águias, cegonhas... do restolho dos furões, toupeiras, fuinhas, coelhos, ratazanas, cobras, lagartos, sardões... do mugir das vacas, do berrar dos toiros cobridores, do zurrar dos burros, do coaxar das rãs nos charcos... dos besoiros rebola-cagalhões, do zumbido das varejeiras, dos mosquitos, das melgas, das abelhas, das vespas... de pôr terra molhada com mijo nas picadelas de abelha... do murmurar das faias, das azinheiras, das bétulas, dos chorões, dos carvalhos... até do cheiro a maresia quando ia passar uns dias de férias de Verão na praia longe com sabor a sal...

Lembrava-se de como a água do ribeiro era fresca e transparente como o vidro... do próprio ribeiro que já não é... de ensebar as botas cardadas e dos trambolhões que elas provocavam nas correrias pelas calçadas... dos guelas que vinham nas garrafas de pirolito... do grande abafador campeão de berlinde com o qual enchera o saco com os guelas dos amigos a jogar às três covinhas... era o berlinde, a carica, o pião, o salto ao eixo... de jogar à 'mãe' e como literalmente voava pelo ar a grande velocidade para cair esparramado em cima dos amigos que formavam a equipa oposta que devia aguentar o peso da equipa dele... de como ao trocar de equipas lhe calhava fazer de 'mãe' e como isso enrijava os abdominais à custa da muita porrada que a cabeça do amigo que ficava à frente lhe dava no abdómen... do sabor das nêsperas da árvore onde ia à chinchada... dos joelhos esfolados e a sangrar dos trambolhões durante as correrias, brincadeiras e jogos... do cheiro e da cor da tintura de iodo e do mercúrio-cromo... da crosta que se não caía, arrancava com as unhas encardidas... do cheiro, do sabor, do lodo do canal de rega onde tomavam banho quando chegava o calor... do sabor das favas cruas chinchadas à socapa no faval... do pinhal à beira da estrada e das mãos cheias de resina e dos barquinhos à vela ou a motor feitos com casca de pinheiro. Que bem que andavam no tanque! e os de motor, com um pequeno elástico a propulsionar a pá feita com um pedaço de pau de gelado, que velocidade!

Lembrava-se do despertar e do espreitar os namorados no pinhal... das noites de calores e suores que as memórias das coisas vistas lhe causavam... do assombro que sentia quando via as artistas a preto e branco na tv... de sonhar com elas a noite toda... do aroma a relva acabada de cortar na boca dela naquele dia em que dançaram juntinhos ao som da filarmónica aprumada no coreto... da primeira vez com a velha com idade para ser sua avó que morava no casebre na berma da estrada que levava 5$00 para satisfazer os moços com a boca desdentada... e 15$00 para os que queriam coisa mais funda...

Lembrava-se de lhe chamarem parolo quando ia com o pai à cidade grande visitar as tias. Diziam-lhe que era a capital e tinha tamanho para isso! Lembrava-se do chiar do eléctrico nos carris cravados nos paralelepípedos de granito... do tlim-tlim quando se puxava o cordão para dar sinal de paragem... da imensa altura dos grandes prédios... das igrejas com campanários a ameaçar furar o céu... dos espantosos autocarros verdes de dois andares, verdade!, que trepidavam como se a terra estivesse sempre a sofrer um terremoto... do odor das pessoas, da naftalina, da brilhantina e da graxa nos bigodes negros e afilados.... do aroma dos deliciosos bolos alinhados no balcão da pastelaria...

Lembrava-se de tanta, tanta coisa!
Coisas que já não lhe serviam para nada, agora que era cota.


Oeiras, Fevereiro 2008
.

3 comentários:

Isabel Magalhães disse...

J.;

Gostei de ler...

'Bateu' uma certa nostalgia, lembrei-me do facto de nunca ter conhecido os meus avôs e de amiúde, quando criança, pensar na falta que faz um avô.

Abraço

I.

Unknown disse...

.

Olá Isabel,

Já somos dois. Também não conheci os meus avós paternos, e o meu avô materno apenas o vi duas vezes na vida. A segunda delas ele estava dentro do caixão.
Tive apenas a minha avó materna, que viveu sempre connosco até falecer.

Às vezes penso é no que podia ter aprendido com eles, com as memórias deles dos tempos idos.
Enfim, agora nada há a fazer. Essas memórias desapareceram para sempre.

bjs

.

Unknown disse...

.

Isabel,

Voltei só para dizer que essa nostalgia também eu a sinto.

Várias destas alembraduras do cota, são alembraduras minhas, dos meus tempos de menino e moço em Alcácer.

bjs

.