sexta-feira, 7 de março de 2008

a picada

.
Este instante foi escrito em 1996. Memória duma possibilidade, para muitos uma realidade, para outros o futuro talvez. Fantasia, ficção ou futurologia?


A PICADA

O fresco da madrugada penetrava-lhe no corpo, profundamente. Através do crepúsculo matinal, e através do óculo de visão nocturna fixo ao capacete negro de plástico endurecido, concentrou o olhar na picada que, com um ar simples e inocente, se desenrolava à sua frente. Sabia que essa inocência podia ser, talvez fosse, uma armadilha e que ali, precisamente ali, podia estar o seu pior inimigo. A traiçoeira mina. Como se os inimigos pudessem ser melhores ou piores! Um inimigo é um inimigo.

E a sua tarefa era destruí-lo. Sem fazer perguntas. Para isso treinara. Dia e noite. Para isso sofrera. Debaixo da chuva mais torrencial, com trovões e relâmpagos a fustigarem sem dó nem piedade o ar à sua volta, ou debaixo do sol mais tórrido e impiedoso, que fazia valer o seu peso em ouro a pouca, e quente, água do indispensável cantil! Rastejando e esfolando o corpo na terra mais dura e ressequida ou metido em lama até à cintura, em lamaçais que fariam feliz o mais exigente dos porcos! Sentira no corpo o que era estar abaixo dos cães. Mas ganhara! As divisas nos ombros e a boina, cuidadosamente guardada no bolso, eram prova disso.

Os primeiros raios de sol rasgavam já o horizonte que se adivinhava para lá das árvores. O céu, antes negro, acinzentava-se. Como se um véu transparente tivesse pousado sobre a floresta. Era a hora. Semi-ergueu-se, mantendo-se curvado para a frente, segurando nas mãos, com firmeza e destreza, a sua arma. Sabia que teria que ser o primeiro a avançar ao longo da picada. Como graduado tinha que dar aos seus homens o exemplo de coragem e destemor que os faria seguirem-no. Como sempre o tinham seguido. Com o olhar firme deu o primeiro passo em frente. Ao pousar o calcanhar no chão sentiu como que um baque no peito e na boca o sabor da inevitabilidade. Teve a brusca noção de que já não podia voltar atrás, acontecesse o que acontecesse. Começou assim a avançar, cuidadosamente, pé ante pé, como se pisasse ovos, tal como tanta vez fizera nos treinos.

Toda a secção o seguiu usando dos mesmos procedimentos. Olhos atentos a qualquer coisa que destoasse do piso irregular de terra, pedras, ramos e folhas. O local, de onde tinham partido, foi ficando para trás, cada vez mais para trás, desaparecendo como uma miragem que se evola no ar, como se nunca tivesse existido. Pé ante pé, passo a passo, lá seguia com o cuidado possível. À medida que o dia clareava, com o sol que finalmente nascera e a temperatura subia, o calor juntava-se ao temor para lhe encharcar o corpo em suor. Mas mantinha o medo perfeitamente controlado. Assim tinha que ser. Sabia que não podia parar. Já não podia parar. Não podia voltar atrás. Mais um passo. CLIC!

O filho da puta do clic traiçoeiro que sempre temera tinha-o apanhado! Não teve tempo para pensar! Foi tudo tão rápido, a partir dali! O estrondo, a explosão tremenda debaixo dele! O braço e a perna que, rasgados como papel, arrancados, voaram para algures, levados pelo sopro mortífero!

A picada estava minada!


Oeiras, 17 Junho 1996
.

5 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Fica-se com um travo amargo na boca, um aperto no estômago, pelas palavras certeiras que colocam o leitor também na picada, com o pé em cima da mina.

Acho que até ouvi o 'clic'...!


[[]]
I.

Unknown disse...

.

Olá Isabel,

A intenção é mesmo essa. Colocar o leitor no cenário e fazê-lo sentir o acontecimento.

Espero tê-lo conseguido.

Obrigado pela visita e pelo comentário.

Bjs,

.

H. Sousa disse...

Excelente, caro José António, excelente! Para quando esse livro de contos?
Sugestões:
- pôr o CLIC numa linha separada.
- www.lulu.com
- http://livros.horabsurda.org
Força!
Abraços

Unknown disse...

.

Caro H. Sousa,

Fico satisfeito por este instante lhe ter agradado.

"Para quando esse livro de contos?"

A ver vamos. Ainda tenho que trabalhar mais, muito mais. :)

"pôr o CLIC numa linha separada."

Cheguei a fazê-lo, mas recuei porque me pareceu que assim respeitava melhor o ritmo que eu queria imprimir ao parágrafo.
Talvez para uma próxima publicação faça essa alteração.

Grato pela visita, pelas sugestões e pelo incentivo.

Abraço

.

O Cu de Oeiras disse...

Também aposto nessa; que tal um livro?

Abraço

Boavida Pires