sexta-feira, 28 de março de 2008

tomate desgraçado

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Este instante da vida de um tomate, que me foi contado na primeira pessoa numa noite em que ao balcão dum bar de alterne trocava confidências com o desconhecido do lado, aquecidos que ambos estávamos pelo uísque de 12 anos, marado, foi escrito às 03:04 do dia 10 de Outubro de 2002.
Quando releio a estória e reflicto sobre o assunto, surpreende-me sempre o paralelismo existencial entre a vida de um desgraçado de um tomate e as nossas próprias vidas.
Concluo que afinal todos somos tomates...


TOMATE DESGRAÇADO

Aquele coitado daquele tomate tinha uma vida desgraçada.
Ao nascer tinha sido logo mal fadado.
Fora um pequeno e indefeso tomatinho verdinho, pendurado pelo seu pedúnculozinho no tomateiro, no meio daquele tomatal imenso, carregado de irmãos e primos seus. Eram uma grande família!
De dia ali ficava pendurado, protegendo-se do duro sol abrasador debaixo das folhas, passando o tempo a olhar em volta apreciando a paisagem, conversando com a família (telepaticamente claro, pois como toda a gente sabe os tomates não têm boca e falam uns com os outros por telepatia).
O tempo ia correndo e ele ia aguardando serenamente o dia em que, quando quase todos estivessem mais vermelhinhos, viessem até eles as mulheres de mãos grossas e calejadas com unhas sujas de terra. Uma delas arrancá-lo-ia do pezinho, atirá-lo-ia para uma caixa com os seus irmãos.
Levariam caixas e caixas cheias de tomates para cima de uma galera puxada por um tractor para os levarem para a fábrica do alemão, onde eram submetidos a terríveis humilhações até, por fim, serem enlatados.
Mas aí, em trânsito, é que estava a chance!
Não se podendo soltar sozinhos do tomateiro, aguardavam esse dia em que as boas mulheres os libertavam para, durante o transporte, aproveitando uma distracção do trabalhador, os mais afoitos saltarem para a estrada e fugirem da escravidão eterna rumo à liberdade.
Os que não queriam arriscar, claro que acabavam nas prateleiras dos supermercados, esmagadinhos e muito apertadinhos dentro de latinhas com rótulos multicoloridos que quase invariavelmente diziam “polpa de tomate”.

Mas ele tinha sido mal fadado.
Um dia um garoto descuidado que brincava com os colegas da escola passara a correr no tomatal pelo meio dos tomateiros e dera-lhe uma porra dum encontrão com a perna que ele ficara logo com uma mossa de lado. Ficou marcado com essa cicatriz para sempre!
Numa outra ocasião fora uma cobra que andava a passear pelo tomatal que se enroscara nele e quase o esmagara. Passou a sofrer de asma!
Já para não falar nos mosquitos devido aos quais apanhara sezões e quase morrera. As marcas lá estavam na sua pele! Mas enfim, apesar dos percalços crescera, avermelhara. Além disso a mulher que o colheu não estava para ter muito trabalho a escolher senão, com tantas marcas, não o teria colhido. A verdade é que o retirou do tomateiro e o atirou para uma das caixas. Assim teve a sua chance.
E aproveitou-a seguindo o exemplo dos outros. Numa curva da estrada saltou da caixa e deixou-se cair e rolar para a berma. Por uma unha negra não foi esborrachado por um automóvel que seguia atrás do tractor!
Mas safou-se e lá se pisgou e fez à vida.

Arranjou um emprego num escritório, alugou um T0 num bairro de subúrbio, fez amigos, frequentou cafés, bares e discotecas, arranjou uma namorada, ou deixou-se ‘arranjar’ por ela, casou pela igreja e teve filhos.
A princípio tudo ia bem, mas... ele tinha sido mal fadado!
A tomata abandonou-o e partiu para parte incerta com um tomate muito mais maduro que ele. E também muito mais cheio de bago.
Assim ficou sozinho com os tomatinhos, ainda pequeninos, ainda verdinhos.
Era pai e mãe ao mesmo tempo, o que não era nada fácil. Eram dois, um casalinho de tomatinhos pequenitos, muito verdinhos, tenrinhos e de pele muito macia.
O tomatito prometia. Era bom estudante, deitava-se e levantava-se cedo, alimentava-se bem, talvez viesse a ser deputado no Parlamento Europeu.
A tomatita é que era um caso um pouco, talvez muito, bicudo. Tinha más notas porque não estudava nada, usava roupas extravagantes, estava magríssima pois não comia em condições, andava sempre em festas e ele tinha-a mesmo apanhado a fumar! Indisciplinada e rebelde, não augurava nada de bom.

Certamente ia acabar comida!


Oeiras, 10 Outubro 2002
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