sexta-feira, 21 de março de 2008

Hora da Janta

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Há dias assim, em que as coisas parecem estar a correr iguais a si mesmas como se o devir fosse uma ilusão, mas em que de súbito o dia muda de rumo sem aviso prévio, como uma greve selvagem em época revolucionária.
A qualquer momento o inesperado pode acontecer. Pode surgir, por exemplo, à hora da janta...



HORA DA JANTA

A Lucinda, dita 'a dos marzápios', também há quem a chame 'das chotas', segundo a vizinhança pelo gosto oral que por elas tem e não esconde de ninguém, gabando-se até de ninguém saber "resolver o assunto tão bem como ela, que o faz desde a Primária a troco de rebuçados e pastilhas"... A Lucinda, mulher gordurosa e feia como um carro de bois, com um cabelo a lembrar um vasculho, desgrenhado e emporcalhado, abana a peidola balofa e gelatinosa no banco em que vai sentada, acompanhando os balanços e a trepidação do autocarro. As manchas, nódoas e alguns remendos na roupa puída denunciam a sua origem e condição.
Entre as pernas sardentas, espessas e varicosas, joelhos encostados, irmanados num estranho acto inverosímil de pudor, entala numa atitude quase lasciva dois sacos plásticos do supermercado Mini Preço, a transbordar de legumes. Couves, alfaces, chicórias, cenouras, tomates, nabos e nabiças, enchem o saco impossibilitados de fugir.
Pela janela do seu lado direito vê os chuviscos que caem lá fora. Chuvisca na cidade escura.
O autocarro pára, imobiliza-se na paragem, alguém carregou no botão de parar, coisa que ela já esperava que acontecesse. Costuma ficar à coca a ver se alguém toca poupando assim a si própria a trabalheira de o fazer. Habitualmente tem sorte e resulta. É raro ter que ser ela a carregar no botão. Os outros que se dêem a esse trabalho, porra!

Lucinda agarra pelas orelhas os sacos das compras, levanta-se e dando encontrões aos passageiros que estão de pé, sem se desculpar, praguejando entre dentes dando a entender que a culpa dos safanões e pisadelas é dos outros que não se desviam pois são uns cabrões ordinários, chega à porta e desce para a rua molhada e escorregadia, no pardo anoitecer outonal.
Continua a chuviscar, agora mais intensamente, ou não fosse ela uma azarada do caralho! Pragueja de novo, desta vez contra o São Pedro, que a olha lá do alto, escondido atrás duma nuvem cinzenta quase negra, que exclama:

— Puta dum cabrão! Se chove é porque chove, se está sol é porque faz calor! Porra, vá um gajo perceber as gajas! Santa paciência! Não há pachorra!


Lucinda, procura escapar da chuva e corre agora na direcção do prédio onde mora e que fica ali quase em frente da paragem. Os sacos balanceiam nas suas mãos e batem-lhe nas coxas.
Ocorre-lhe um pensamento:

— Gosto mais quando as pancadas são na parte de dentro das minhas pernas!


Finalmente, após a curta corrida desengonçada, alcança esbaforida e ensopada a velha porta de ferro pintada de verde, do prédio onde mora, edifício de 5 pisos degradado e caduco, com a pintura da fachada de cor já indefinida a cair e com pedaços de argamassa a esboroarem-se para a calçada.
Ao entrar, não repara e pisa um cagalhão de cão, o que quase a faz escorregar e cair. Grita impropérios contra a Alzira, a vizinha do 3.º esquerdo, que é viúva e vive sozinha, e tem um canzarrão preto enorme que passeia todos os dias em frente ao prédio, e que até há quem jure a pés juntos que ela faz porcarias com o cão, a badalhoca! Ainda se o fizesse para ganhar dinheiro, vá que não vá...

Colocando-se de lado, com o ombro empurra a porta, que chia lugubremente a pedir óleo nas dobradiças, entra no átrio húmido e escuro revestido de tristes azulejos estampados dos anos 40, e evita pisar a enorme poça de água da chuva que vem da rua e passa sob a porta aproveitando o piso inclinado. Contorna a poça, roçagando um dos sacos pela parede.
Sobe a escada de degraus de madeira suja e carcomida e desengonçados até ao 1.º andar, habita no direito, onde pára. Coloca os sacos no chão com um suspiro de alívio, tira com alguma dificuldade a chave do bolso do blusão de plástico, deixando cair no chão o lenço ranhoso que veio agarrado às chaves e que apanha e mete de novo no bolso, abre a porta e, pegando novamente nos sacos, entra em casa, empurrando a porta com a biqueira do sapato. O sapato do presente canino, por acaso, que de imediato deixa uma pequena nódoa acastanhada no tapete da entrada.

A casa, como seria de esperar, dizer 'modesta' é pouco...
Os móveis são velhos e carunchosos. Nota-se que é conveniente não lhes tocar. Um aparador, logo após a entrada, tem uma porta segura com uma corda de nylon cuja ponta, engenhosamente, enrodilha num prego, genialmente pregado ao bordo, a fazer de fechadura.
A carpete, fixa ao chão com sinistras tachas de cabeça negra, que devia poupar o soalho, nem a si própria se consegue poupar, a julgar pelos buracos que apresenta espalhados aqui e ali nas zonas de mais frequente passagem e pela cor que já nada tem a ver com a original. A prateleira meio inclinada pregada à parede do lado direito, inundada de molduras com fotografias antigas e descoradas, cheia com pequenas figurinhas de toda a espécie e origem, talvez memórias de feiras e romarias, bibelots de gosto duvidoso, objectos inidentificáveis e proveniência desconhecida, contribuem para dar à dependência um ar de bazar marroquino. Assim como o cheiro a mofo.
A imagem, daquelas que brilham no escuro, duma Na. Sra. de Fátima numa prateleirinha fixa à parede oposta, a esquerda, ao lado dum enorme quadro multicolor com o emblema do Benfica, não deixa margem para dúvidas. Ali respira-se santidade e idolatria!

Lucinda segue em frente e passa pela sala, único caminho para a cozinha, assim como para a casa de banho e para o único quarto da casa. Sala onde está o marido, o Orlindo, um homem espesso e cabeludo com ar de labrego, barba por desfazer, ainda de pijama, que de vez em quando trabalha nas obras - que de vez em quando trabalha... - espojado ao comprido no sofá a beber cerveja duma lata, rodeado de latas vazias e amachucadas, e a ver futebol na RTP1.
Jogam o Benfica e o Porto. Pela cara dele o resultado não lhe está a agradar nada:

— Foda-se, caralho! Não me digam que estes cabrões vão perder o jogo! Ao menos empatem, porra, que estão a jogar em casa!


Ela pára, olha a televisão, olha para ele, que quase não lhe liga, trocam algumas palavras, mas ela nem refere o jogo para a conversa não azedar. Ela sabe o que a casa gasta e ainda não se esqueceu do último olho negro...

O Orlindo é um lampião ferrenho e "quem não é do Benfica não é bom chefe de família" segundo ele. E assim ela limita-se praticamente a dizer-lhe que vai fazer o jantar e dirige-se para a cozinha com os sacos.

Tira os legumes dos sacos, os quais colocou sobre a bancada, e enfia um deles na cabeça, começando a cantarolar "Eu tenho dois amores" de Marco Paulo, ao mesmo tempo que coloca duas pequenas cenouras nas narinas e dois rabanetes nos ouvidos.
Abre uma custosa gaveta que lhe deixa o puxador na mão, o qual volta a enfiar nos parafusos, escolhe uma faca bem afiada, uma das poucas coisas que ainda funcionam bem lá em casa, e começa a preparar os legumes continuando a cantarolar.
O casal de canários que está na gaiola pendurada por sobre o tanque de lavar a roupa na marquise acompanha-a, trilando. A um canário tanto se lhe dá que a cantora seja a Lucinda ou a Edith Piaf, que o mote seja Marco Paulo ou Jacques Brel...
Está a boa da Lucinda a lavar as folhas de couve debaixo da água fria que corre da torneira, quando um urro horrível e lancinante acompanhado dum estrondo surdo, vindo da sala, a faz dar um pulo de susto e atirar pelo ar as folhas de couve.

— AI, MEU DEUS! AI, NOSSA SENHORA! PUTA QUE PARIU!

Limpa rapidamente as mãos ao trapo e corre para a sala, rezando para que o seu Orlindo não se tenha passado à conta do maldito jogo, a merda da bola, e não tenha partido a televisão.
À conta dos passanços com as derrotas das Papoilas Saltitantes, só nos dois meses anteriores tinham substituído três televisores... A sorte é que o primo do Orlindo, o Nelo Tocabaixinho, anda no 'trabalhinho' e desenrasca umas televisões Sony baratuchas, senão não tinham dinheiro que chegasse para aquele 'filme'.

Chega à sala e o que vê enche-a-a de pavor.
Um horror indescritível toma conta dela e quase a faz mijar-se pelas pernas abaixo com o choque.
O Orlindo está completamente nu, como veio ao mundo, com a gorda e branca pança a abanar para cima e para baixo, e os penduricalhos a balouçar, em cima da mesa... a dançar o Kalinka!

— A MESA QUE A MINHA SANTA MÃE QUE DEUS TENHA EM DESCANSO NOS DEU DE PRENDA DE CASAMENTO Ó ORLINDO!! —grita, horrorizada.

— KA LIN... KA KA LIN... KA KA LIN... KA KA YA! — canta e dança Orlindo.

— Quê, o Benfica meteu golo? Ganhou o jogo? — pergunta Lucinda, um pouco a medo e receosa da resposta e da reacção.

— QUAL BENFICA QUAL CARALHO, MULHER! — explode Orlindo sem interromper a pantomima — Interromperam o jogo para uma notícia importante, qualquer coisa do estado, para dizerem QUE O BOIZANAS FOI CORRIDO, QUE JÁ NÃO É PRIMEIRO-MINISTRO E QUE O GOVERNO CAIU !!

— KA LIN... KA KA LIN... KA KA LIN... KA KA YA !
!!!


Oeiras, 21 Março 2008
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2 comentários:

SP disse...

Risos. Gostei... Um abraço...

Unknown disse...

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Caro SP,

Grato pela visita, que já retribuí.

Volte sempre.

Abraço

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