sexta-feira, 14 de março de 2008

soldadinhos de plástico

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Este instante foi escrito em 17 de Outubro de 2003, a partir de uma ideia original de Dezembro de 1995 desenvolvida posteriormente em 30 de Abril de 1996. Ei-lo na sua forma definitiva, após uma revisão e pequenas correcções e aperfeiçoamentos.
O teatro de operações é muito diferente das consolas de jogos.
Além de que na guerra não são só os projécteis que matam...


SOLDADINHOS DE PLÁSTICO

Acocorado atrás de um bidão de lixo tombado, numa esquina de um cruzamento de duas estreitas ruas, ladeadas de casas de adobe semi-destruídas, pejadas de destroços dos últimos combates, sentindo nas mãos o contacto morno da espingarda automática, o soldadinho observava, através da cortina de lágrimas causada pelos fumos, que lhe velavam os olhos, atento como um predador, a rua e as casas à sua frente procurando localizar o ponto donde tinha partido o disparo que tinha vitimado mortalmente o camarada caído um pouco mais atrás, trágica e grotescamente deitado de costas na terra esburacada, os braços abertos em cruz como querendo abraçar uma vida que não voltaria, o olhar para sempre baço fixo no céu cinzento, envolvido num lago de sangue espesso e escuro. Na posição em que ficara fazia lembrar um cristo descido da cruz.
O soldadinho limpou os olhos com as costas da mão suja de pó. O silêncio parecia ter solidificado à sua volta. O silêncio parecia amortalhá-lo naquela rua agora fria, naquela cidade onde falavam uma língua estranha que ele não compreendia, naquele país tão distante e tão diferente das imagens virtuais das consolas computadorizadas, dos simuladores 4D de combate que, no quartel, usavam para os treinos de guerra.

O soldado, emboscado atrás de uma parede, espreitava a rua atento a qualquer movimento, qualquer modificação no padrão de imobilidade fotografado pelos seus olhos duros, registado no seu cérebro.
Tinha vivido muitas guerras. Aquela era apenas mais uma.
Podia ser a última, mas isso acontece com qualquer guerra. Todos os soldados sabem isso. E de certa forma todas as guerras são sempre a última guerra. Pois todas são o começo do fim. Por mais treinado e experiente que se seja. Em qualquer uma, em todas elas, um pedaço de nós fica lá para sempre.
E esse pedaço que sempre nos é arrancado, por ser apenas um pedaço é sobretudo um todo. Atrás dele é todo o nosso espírito, toda a nossa alma que desaparece. Que se desfaz no ar como uma nuvem de fumo. Até que um dia não só nos arrancam o espírito mas levam junto com ele o corpo.

Tinha visto o movimento dos soldadinhos. A progressão deles entrou no seu campo visual manchando ostensivamente o espaço.
Estava pronto há algum tempo. O seu camarada caído no chão ao seu lado era o resultado da entrada dos soldadinhos na rua.
Tinham entrado de rompante a disparar como loucos em todas as direcções e um dos projécteis ricocheteara e atingira o seu companheiro, quando este vigiava a rua empoleirado na janela. Caíra para trás com um baque surdo explodindo-lhe o sangue pela boca.
O soldado, que descansava sentado de costas apoiadas na parede, levantara-se de um salto. Espreitara cautelosamente e vira-os. Apoiou a arma no peitoril da janela. Apontou ao que vinha um pouco mais à frente, tirou a folga ao gatilho, suspendeu a respiração por um instante e disparou.
O projéctil saiu e fendeu o ar silvando. Já ninguém o podia parar. Foram avos de segundo até tocar o soldadinho.
Penetrou-lhe o camuflado, atravessou-lhe a camisola, violou-lhe o peito rasgando-lhe as costelas, trespassando-lhe o coração jovem que nascera longe, que imediatamente parou, e saiu pelas costas perdendo-se algures ao fundo da rua. Ninguém o iria procurar.

Agora aguardava.
Ao seu disparo, o outro soldadinho tinha saltado para trás de um bidão. Vira-o, pelo canto do olho, atirar-se ao mesmo tempo que aquele que atingira caía no chão. Sabia que devia ficar atento. O soldadinho escondido estava com certeza a rezar-lhe pela pele e ele não fazia tenções de a deixar por aquelas bandas. Não se queria expor. Era melhor deixar que os nervos levassem o outro a tomar a iniciativa e a colocar-se em desvantagem.
Assim, mantendo sempre a atenção sobre o local onde o soldadinho estava abrigado, levou a mão ao bolso e tirou o maço de tabaco que a logística tinha distribuído a todos. Tabaco de merda, diga-se de passagem.
Tirou um cigarro. Acendeu-o e deu uma baforada. O fumo de má qualidade fê-lo tossir:
— Porra! Esta merda ainda me mata!

O soldadinho continuava agachado atrás do bidão.
Perscrutava atentamente o espaço à sua frente. Sabia que o tiro tinha saído daquele quarteirão cerca de cinquenta metros mais à frente, do lado esquerdo da rua. O atirador devia ainda estar emboscado no seu covil. Certamente à espera que ele se expusesse. Era o que faria se estivesse no lugar do outro. Talvez, se esperasse, o outro perdesse a paciência e descuidado se mostrasse.
No entretanto, levou a mão ao bolso e tirou um pequeno frasquito metálico, desenroscou-lhe a tampa e deu um gole. Um grande gole daquela aguardente que a logística tinha distribuído a todos eles. Aguardente de merda, diga-se de passagem.
O álcool queimou-lhe a garganta, engasgou-o e tossiu:

— Foda-se! Esta merda ainda me mata!


Oeiras, 17 Outubro 2003
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