sexta-feira, 18 de abril de 2008

falta de ar

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Um instante um pouco kafquiano, mas possível.
Afinal, quem pode dizer de modo absoluto quais os contornos da realidade? Do possível e do impossível?

Original de 17 de Outubro de 2001.



FALTA DE AR

— CHEGA DE TELEVISÃO POR HOJE! — Pensou, ao mesmo tempo que se levantava a custo do sofá de napa, excessivamente mole, onde estava afundado, piscava os olhos cansados, a requerer uma ida ao oftalmologista, estendia o braço e desligava o aparelho catódico, do qual a imagem se sumiu como que sugada por uma palhinha invisível e sôfrega.

Olhou atentamente ao derredor da sala agora penumbrosa, espreguiçando-se e verificando se havia mais alguma coisa ligada além da ténue iluminação do tecto, iluminação, aliás, constituída apenas por uma lâmpada fraca e amarelada cujo suporte estava pendurado pelo próprio fio de corrente, há muitos anos. Fora adiando e continuava a adiar para o dia seguinte a compra e instalação dum candeeiro ou um abat-jour.
O computador Macintosh, máquina de eleição e estimação, apoiado em cima da secretária, ao canto, estava em standby como de costume.
Tinha estado a finalizar um texto sobre as agressões ao património histórico e cultural que estavam a acontecer na sua freguesia, muitos deles da responsabilidade da própria autarquia, texto este que pretendia publicar num blog do qual era colaborador, acompanhando o mesmo com algumas fotografias ilustrativas. Amanhã trataria de o fazer.
Desligou também o Mac. Não ia precisar dele pela certa, visto que se ia deitar.

Saiu da sala apagando a luz, deixando a dependência numa escuridão apenas entrecortada pelo clarão que vinha dos candeeiros de iluminação pública da rua e os flashes que varriam as paredes, causados pelos faróis dos automóveis que passavam.
Deixou a porta da sala aberta para trás.
Era um apologista do open space e, à falta dele, tinha por hábito ter todas as portas dentro de casa abertas de par em par.
Isto dava-lhe uma sensação de espaço e liberdade, da casa ser maior, além da vantagem de a arejar.
Ia ao extremo de ter sempre a porta da varanda aberta, mesmo no Inverno, mesmo em dias e noites em que chovia torrencialmente, fazia frio e trovejava.
Gostava desse contacto com os elementos.

Claro que pagava o preço... a água da chuva molhava o chão da sala junto à porta da varanda e os tacos do soalho já não tinham um aspecto lá muito saudável...
Mas era agradável e recompensador, sobretudo em noites de grande temporal e trovoada. Aquela dicotomia fazia-o sentir-se bem e confortável.
Estar dentro da sala no conforto, debaixo da asa protectora, ao mesmo tempo que ouvia os trovões e a chuva, via o relampejar e sentia o frio que vinha da rua pela porta aberta!
Era uma sensação única! Sentia-se vivo!

Dirigiu-se ao quarto para se deitar e entrou pela porta aberta.
Acendeu a luz, avançou o corpo na direcção do leito e o seu coração deu um pulo!
Sentiu um estranho arrepio na nuca e um baque rasgou-lhe o coração acelerando-o.
No lugar habitualmente ocupado pela cama estava um enorme tanque de vidro translúcido e levemente azulado cheio de água clara e transparente!
Sentiu uma terrível falta de ar tomar conta do seu ser. Não conseguia respirar!
Por mais que se esforçasse para encher o corpo do desejado oxigénio, não o conseguia. Asfixiava!
Libertou-se rapidamente da roupa que o atrapalhava, largando-a a trouxe-mouxe no chão, e num fantástico salto mergulhou no tanque esparrinhando água pelo chão e pelas paredes.
Abriu a boca sofregamente e sorveu com força a água salvadora.
A água entrou na sua boca, passou célere pela garganta e pelas suas guelras cujos opérculos abriram e fecharam rápida e violentamente, e libertou o necessário, urgente, oxigénio!
Acalmou, moderou a respiração borbulhando docemente na água do tanque, serenou, e sentindo-se mais tranquilo estendeu o braço e apagou a luz, fechou os olhos e adormeceu no silêncio da noite calma.


Oeiras, 27 Março 2008
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3 comentários:

Isabel Magalhães disse...

J;

Vou pensar no assunto...

(fiqui sem saber o que dizer)

:)

bj

Unknown disse...

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Pensa, pensa...

Eu vou fazer o mesmo.
Mas primeiro vou jantar... :)))

bjs

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Isabel Magalhães disse...

Já jantei, dormi, tomei o pequeno almoço e não consegui lembrar-me de uma anedota surrealista, dos tempos da minha adolescência, e que era pertinente escrever aqui. Assim, olha... gostei do conto, como sempre, pese embora a tal sensação de falta de oxigénio. eheheh!

Tem um dia bom.

bj

I.