sexta-feira, 25 de abril de 2008

da vida de um cretino

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O governo e a Banca agradecem este instante...
Recriação dum original de 12 de Outubro de 2002.



DA VIDA DE UM CRETINO

Tinha parado o carrinho de compras, tristemente meio vazio — ou meio cheio?! —, naquele corredor, cansado de o empurrar e de não saber que mais comprar.
Tinha esgotado a lista de compras que laboriosamente fizera em casa, com a sua típica letra miudinha de escriturário, numa pequena folha de bloco.
Ao longo dos dias ia anotando as faltas que tinha em casa, além de outras coisas de que se ia lembrando, por vezes ocorrência do acaso, da inspiração súbita, ou apetites repentinos, anotações que posteriormente juntava e passava a limpo para uma daquelas folhas dum bloco adquirido propositadamente para o efeito.

— NÃO POSSO VOLTAR PARA CASA COM MEIA DÚZIA DE COMPRITAS... NEM PENSAR! - Cogitou, incomodado com a sinistra e confrangedora ideia. Um arrepio angustiante percorreu-o de cima abaixo.

Só vinha ao hiper duas vezes por mês e levava sempre doze ou treze sacos de plástico repletos de caixas disto, embalagens daquilo, rolos de não sei quê, pacotes de não sei que mais.
Tinha mesmo trocado de carro para um outro maior e mais espaçoso, no qual conseguia transportar os sacos todos, ao invés do que acontecia com o seu velhinho Fiat, que o obrigava a deixar guardados no snack-bar metade dos sacos e a fazer duas viagens.
Enfim, dois terços do seu parco vencimento lá ficavam todos os meses.
Assim era, assim tinha de ser.

Se não cumprisse essa meta como é que ia conseguir manter as contas em dia e o orçamento desequilibrado? Não sabia viver com um orçamento equilibrado!
Causava-lhe uma profunda e angustiante estranheza saber que gente havia que o conseguia. Um orçamento equilibrado era uma coisa do demo, de belzebu!
Tinha de o desequilibrar desse lá por onde desse, comprasse o que comprasse!
E enquanto os seus supliciados miolos fervilhavam à procura de uma solução olhou para o lado e viu-os.

Sob as muitas e bem recheadas prateleiras, que enchiam de alto a baixo a enorme estante, pendurados nos finos suportes de metal, os blisters multicoloridos, sinfonia esfuziante de matizes, cheios de letras enérgicas, vibrantes, e desenhos gritantes, olhavam sedutora, incisiva e apelativamente para ele. O supremo génio criativo dos designers tinha transmutado o singelo cartão e plástico num canto de sereia. Inebriante e irresistível.
A pregnância invadiu as suas pupilas e cravou-se-lhe no espírito com a força duma marretada.
Centenas de blisters! Lindos! Ali mesmo ao seu lado prontos a serem adquiridos!

Olhou à volta para avaliar as hipóteses de outros clientes deitarem a unha a algum.
Os que estavam perto estavam suficientemente longe da prateleira para não terem tempo de o ultrapassar. Tal como acontecia com a velhota coxa que apoiada numa bengala caminhava lentamente na direcção dele. Era a cliente que mais perto estava, mas àquela velocidade nunca conseguiria lá chegar primeiro.
Num salto rápido e atlético, como um gafanhoto, aproximou-se e começou rapidamente a tirar os blisters dos suportes. Dois a dois, três a três, às mãos cheias, atirou-os para dentro do carrinho a trouxe-mouxe.
Rapidamente esvaziou por completo a prateleira, respirou fundo, alegre, e aliviado, com ar triunfal, agarrou a pega e conduziu velozmente o carrinho até à caixa registadora.
Colocou as compras no tapete rolante olhando de soslaio para os outros clientes, numa atitude prenhe de orgulho e sentimento de vitória. Pagou com o cartão de crédito, como de costume. Ensacou as compras e saiu da grande superfície em direcção ao estacionamento. Colocou os sacos no porta-bagagens, entrou na viatura e foi para casa.

Com cento e cinquenta blisters, cada um com cinco pequenas borrachas escolares coloridas, cada qual da sua cor.
Era agora o possuidor de setecentas e cinquenta estúpidas borrachinhas que não lhe serviam para nada. Mas conseguira!!
Este mês ia ficar outra vez com dificuldades económicas. Ia ficar outra vez endividado e com a corda ao pescoço.
Viver não custa...


Oeiras, 17 Abril 2008
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