sexta-feira, 2 de maio de 2008

o velho levantou-se lentamente...

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Este instante da vida de um velho foi originalmente manuscrito em 31 de Março de 2001. Foi desenvolvido a posteriori em 19 de Junho de 2001 e em 11 de Outubro de 2002.
É uma daquelas estórias que demoram a adquirir uma forma acabada e definitiva. Forma que apresento hoje aqui.
O mote foi-me dado pela minha experiência pessoal, pelo contacto com uma pessoa com quem trabalhei numa gráfica em Lisboa e que inspirou o personagem aqui representado.
Não é um retrato dessa pessoa, mas sim uma elaboração feita a partir da realidade.


O VELHO LEVANTOU-SE LENTAMENTE...

O velho, ossudo e de cabelo completamente branco, magro e alquebrado, levantou-se lentamente do seu lugar fazendo ranger a vetusta cadeira de braços de madeira e acento de cabedal escuro surrado pelo uso. Compôs a gravata grenat riscada, único toque de cor que trazia vestido, ajeitou agarrando-o pelas abas o casaco preto e compôs também o relógio de pulso agitando o braço. Olhou circunspecto o tampo da secretária de madeira escura, cheio de papéis que tinha acabado metodicamente de organizar em montinhos. Pegou na pasta de cabedal preto, levantando-a do chão sem indícios de pressa. Contornou a secretária, acercou-se da porta do gabinete. Rodou o puxador e abriu-a. Com a mão livre apagou a luz e saiu, fechando a porta atrás de si.
Caminhou na lentidão dos seus 78 anos ao longo do corredor com paredes brancas de tabique e soalho de tábuas, revestido por uma carpete marroquina, silencioso, de olhos fixos no chão.
Deu as boas-noites à hirta recepcionista, sentada à secretária no pequeno hall da entrada. Mulher de meia idade de grandes mamas excessivamente maquilhada, quase silenciosa na sua quietude gordurosa. Gritantemente explosiva nas cores berrantes do seu vestuário.
Não se cruzou com mais ninguém até chegar à rua, que ia ficando sombria com o aproximar da noite. Já todos tinham saído.

Caminhou ao longo do passeio estreito e irregular, evitando os transeuntes apressados e os buracos na calçada. Os carros passavam velozes, trepidantes nos paralelepípedos de granito da rua, buzinando e expectorando fumo espesso. Condutores e peões gritavam imprecações e protestavam uns com os outros.
Dirigiu-se à estação de Metro, a uma centena de metros dali. Na mão direita conservava bem segura a velha pasta de cabedal negro já muito gasta dentro da qual transportava... sabe-se lá o quê? Ilusões? Segredos? Mentiras? Paixões? Velhas memórias de ideologias caducas?
Após um trajecto difícil mas sem percalços chegou à entrada da estação de Metro e desceu vagarosamente as escadas apoiando-se no corrimão, no que foi acompanhado por dois ou três transeuntes.

Avançou pela gare, quase deserta apesar da hora do dia, até cerca de um terço do comprimento desta. A longa prática tinha-lhe ensinado qual o melhor ponto para esperar a composição, e entrar numa carruagem na qual ficasse perto da saída ao chegar à estação de destino.
Parou à espera na imobilidade cinzenta, apenas quebrada aqui e ali por alguma fraca luz amarelada. Sabia que não iria ter que esperar muito.
O tenebroso grito lancinante do comboio inundou de súbito o subterrâneo. Anunciou a sua chegada. O comboio, como um tiro, emergiu do túnel, estacou e abriu as portas.
O velho deixou sair os passageiros que ali terminavam a viagem e só depois avançou e entrou no comboio. Escolheu um lugar e sentou-se muito direito junto à janela com a pasta sobre os joelhos.
As portas fecharam ao som da buzina. O comboio arrancou estridente, trepidando numa aceleração crescente, e invaginou-se no túnel negro à sua frente, como uma serpente, perdendo-se sob a cidade palpitante, cardíaca.


Oeiras, 25 Março 2008
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