sexta-feira, 23 de maio de 2008

o homem fragmentado

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Há sempre na vida de cada um de nós um instante, quiçá breve, mas que alguns seres que somos poderão sentir como toda uma existência, um instante como este em que o todo se transmuta em nada.
Recriação dum original de 12out2002.


O HOMEM FRAGMENTADO
recordando O Homem Demolido de Alfred Bester

Deitado na mais completa e dura escuridão, aqueles negrumes que doem como grito rasgado em noite de nevoeiro, mergulhado num silêncio atrozmente audível, o homem sentia no corpo nu o contacto áspero, quase obsceno, do lençol.
Não era o contacto habitual. Não era o toque doce, macio e suave dos lençóis da sua cama, onde repousava todas as noites da labuta diária.
Sentia que havia algo de estranho a envolvê-lo, a amortalhá-lo, Como se um espartilho o envolvesse e lhe reprimisse os movimentos. Sentia-se fortemente abraçado por um sudário. Invisível mas perceptível.
Procurou concentrar-se no seu próprio corpo, na sua imobilidade. Focou a atenção no tacto, o único sentido que naquelas circunstâncias lhe garantia alguma certeza no contacto com o real.
A pouco e pouco sentiu que o seu corpo se fragmentava em minúsculos pedaços que iam desaparecendo dele sem que o pudesse evitar, pedaços que se soltavam impossíveis de recuperar.
Pedacinhos que a pouco e pouco se transfiguravam em grandes bocados. Não havia dúvida! O seu corpo desintegrava-se!

Num esforço mental gigantesco, titânico, tentou integrar-se, reunir as peças, os fragmentos que se soltavam, aglutiná-los num só corpo, o seu corpo de sempre, de todos os instantes, de todos os dias, de todos os prazeres e desprazeres, corpo ao qual se habituara e com o qual vivera toda a vida, mas havia algo exterior a ele que o impedia.
Havia uma força terrível e tremenda superior à sua que não deixava!
O seu corpo fragmentava-se como se fosse uma peça de porcelana mal colada, cujos pedaços, por força da gravidade, vão escorregando.
Primeiro sentiu que ficava sem pernas, sentiu que elas se separavam do corpo, e deixou de as sentir por completo.
Depois sentiu que lhe desapareciam os braços, que deixavam de existir.
Ficou reduzido ao tronco e à cabeça. Cabeça onde já nem a dor cabia.
Mas o tronco não demorou a desaparecer também no nada, seguindo o caminho do resto de si.
Estava agora reduzido à cabeça, a qual se apoiava, grotescamente tombada de lado, na almofada, solitária.
Tentou gritar mas a falta de pulmões que lhe fornecessem ar às cordas vocais impediu de sair o grito desejado.
Assim continuou imóvel a sentir os pedaços de si evolarem-se como fantasmas que nunca tivessem existido.
Sem qualquer som caíram-lhe as orelhas.
Como estava escuro não se apercebeu quando os olhos se foram também.
E atrás deles os lábios logo seguidos pelas gengivas, os dentes e a língua.

Quando o despertador de césio tocou ao amanhecer, sincronizado que estava pelo Tempo Universal Coordenado, restava apenas um crânio branco descarnado a envolver o purulento e pútrido cérebro morto, esvaziado do ser.


Oeiras, 15 Maio 2008
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