sexta-feira, 11 de abril de 2008

hemorróida hodierna

.
O mundo pode ser diferente substancialmente, para melhor... com se vai ver.
Já o acreditava em 22 de Abril de 2005, quando escrevi esta expirada prosa, e continuo a acreditar.

Este é um curto instante polvilhado duns pózinhos de metafísica, e algum delirium tremens já agora, pois a existência, que segundo o Jean-Paul precede a essência, a existência dizia não se escreve apenas com tinta de choco em papel caiado.



HEMORRÓIDA HODIERNA

A manhã acordara nublada, fria e ventosa. O tecto de nuvens escuras, que ocultava o habitualmente inclemente Sol, acachapava-se a pouca altitude sobre o ritmo trepidante de mais um dia de trabalho. Ou de labuta, como alguns preferem dizer, vá-se lá saber porquê.
Os objectos, equipamentos, motores, máquinas, veículos, entes contra-natura feitos para apressar a pressa de chegar depressa ao fim, acelerar o gume da gadanha, pulsavam, crepitavam, guinchavam, cuspiam, roncavam, trepidavam, gemiam, grilavam, bufavam, vibravam, numa orgia matinal costumeira e useira, como estúpidas baratas tontas.
Mas as baratas tontas mesmo, não eram os objectos. Eram as pessoas. Baratas enfarpeladas e fétidas a exalar falsas essências matinais. Enxame de sexos envergonhados. Tesões escondidos nos almíscares de marca.
As baratinhas cheirosinhas cirandavam como loucas. Há que cumprir os horários. Mesmo que não se faça nada. Não é o trabalho que o patrãozinho paga. É a assiduidade... o resto que se foda!

Foi neste clima cinzento e com este estado de espírito merdoso que saí de casa e cheguei à rua. Estranhamente, ou talvez não, veio-me ao espírito o nome Afrodite.
Senti o súbito impulso de voltar para casa, despir-me, deitar-me na cama, talvez ainda estivesse docemente morna, e deixar-me mergulhar no sono e no sonho. Sonhar com outro mundo. Um mundo mutável, realmente. Um mundo em que cada vez que eu olhasse para o lado, as coisas tivessem mudado de sítio e o espaço fosse diferente. Ou nem sequer houvesse espaço... Em que me deitasse e a mesa-de-cabeceira estivesse ao lado da cama, mas quando acordasse ela estivesse, por exemplo, na cozinha ou sobre o bidé.

Porque é que a merda do Sol há-de pôr-se e nascer todos os dias?! Porque carga d'água é que o filho dum cabrão não varia, e um dia põe-se e não nasce no dia seguinte, e noutro dia nasce mas não se põe, etc., e por aí afora?!
A vida teria muito mais interesse num mundo em permanente mutação! Todos os dias, a todo o instante, tínhamos uma coisa nova para dar alegria à nossa existência lúbrica e escorregadia. Viveríamos um mundo realmente gaio!
Mas não. Vivemos num mundo estuporado onde as mudanças são tão lentas, que demoram milénios, milhões, e nem as conseguimos percepcionar.
A impressão de mudança e movimento que temos não passa duma ingénua ilusão.

O mundo não teria muito mais graça se um cro-magnon se deitasse hoje com uma 'cro-magnona', desse uma queca cavalar, transpirada e bem peluda, adormecesse, e amanhã acordasse ao lado duma sapiens? Ou um gajo, escriturário, sair às 18 h. da empresa, ir para casa, no dia seguinte ir de novo trabalhar, e o porteiro dizer "Bom dia, como está Sr. Director?" Ou, para quem gosta de carros, estacionar o Fiat Uno à porta da pastelaria, e ao sair ter lá um Testarossa? Era do caneco, porra!
Sobretudo porque neste mundo de evolução rápida, de ultra-mutação, qualquer mudança seria sempre para melhor. Uma determinada lei física impediria qualquer forma de regressão.

Acordei das minhas divagações idiotas com o barulho ensurdecedor da travagem da camioneta, que arrimava a paragem, sonolenta. Olhei para a bandeira da mesma, para saber o destino. Em garrafais letras amarelas, ao lado do número da carreira, pude ler:

— IMPERATIVO CATEGÓRICO!


Oeiras, 06 Abril 2008
.

Sem comentários: