sexta-feira, 20 de junho de 2008

barca de Caronte

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Um instante de 19 de Outubro de 2005, com ligeiros toques na ortografia. Uma brincadeira pseudo-surrealista de inspiração mitológica.


BARCA DE CARONTE

Atrevi-me. Sem bem perceber porquê, talvez um apelo insolúvel do ser que não é, atrevi-me.
Eu sabia que tinha que ir e para onde ir. Sabia-o há muito tempo. Talvez desde a última glaciação que o sabia. E sabia também com uma funda convicção que era apenas uma questão de atrevimento. Por isso, apesar de eu ser pouco atrevido, atrevi-me.
Saí daquele cubo rochoso de granito e emoções reprimidas que tinha sido a minha morada durante os últimos trezentos anos, olhei ao redor para a floresta imponente de acácias e fiz-me ao caminho. Pelo único caminho possível. O de Sueste.

Avancei pela picada, apesar de a temer minada. Contudo, eu acreditava que os meus pés sentiam a presença do solo seguro e sabiam por si mesmos escolher os pontos seguros para se apoiarem. Afinal, ora gaita!, aquela mesma picada tinha sido usada por Zaratustra quando este desceu da montanha.
De qualquer forma, não teria graça nenhuma ouvir-se (ouve-se?) um grande estrondo de súbito e o meu corpo ser espalhado em dezenas de fragmentos em todas as direcções. Não me apetecia mesmo nada. Ainda por cima, ao que sei pelo que já vi de mim mesmo, os bocados do meu corpo destroçado assemelhar-se-iam a pedaços de carne crua de galinha. É feio e não tem estética nenhuma.

Cheguei já de noite muito nocturna. Estava frio e não havia brisa nenhuma. A margem era carregada de dor moliçada sobre a areia. Ouviam-se grilos restolharem as ervas ralas e secas e correrem esbaforidos, assustados por algum ser de outro tempo. Talvez eu.

A prancha de madeira escorregadia envaginava-se literalmente na água tal era a sua inclinação. A seu lado observava-se o tenebroso e negro vulto baloiçante da gigantesca barca. Ocorreu-me que nenhum ser deste mundo seria capaz, sem ajuda, de a manobrar. Apenas forças extraterrenas o conseguiriam fazer. Ou diabólicas.

Avancei pé ante pé, cuidadosamente, temendo escorregar e cair na água negra e escura, que eu sabia infestada de lagostas corticeiras. Seria o meu fim. E seria triste. Após ter vencido a perigosa e traiçoeira picada, acabar os meus dias diarreicamente embuchado, mesmo junto à meta.
Consegui não cair e agarrei-me à amurada da embarcação. Num atlético salto digno de um olímpico saltei por cima desta e aterrei no convés.
Assim pus pela primeira e última vez o pé na barca.

Logo que o fiz uma forte dor acometeu-me as entranhas. as vísceras revolucionaram-se-me como uma assembleia de anarquistas, agitados ante a excitação das bombas. Mas procurei acalmar-me. Consegui.
Levantei a cabeça e vi-o.

Caronte olhou-me nos olhos e sorriu. Detestei o seu sorriso. Pareceu-me cínico. Como se me quisesse dizer que algo estava fora do lugar. Mas eu sabia que o cometa continuava a sua excêntrica rota sem desvios.
Apesar do nome, cometa, o pobre astro não é dado a pandeleiragem. E por isso não se desvia da rota e segue o seu rumo como uma freira vestida de negro, que ama a Cristo e não cede às tentações da carne.
Hei-de um dia tentar definir esta relação entre 'tentação' e 'carne'.

Sentei-me à espera que Caronte fizesse alguma coisa. O bruto espetou a grossa e comprida estaca no fundo lodoso e empurrou com gana.
A barca começou a mover-se lenta. A água marulhou à proa.

Olhei em torno de nós.
A escuridão envolvia-nos como um nevoeiro negro, como se alguém tivesse derramado tinta de um milhão de chocos na atmosfera.
Não se via nada. Também nada havia para ver.


Oeiras, 12 Junho 2008
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5 comentários:

Heduardo Kiesse disse...

Gostei do atrevimento do texto e da sua mestria! Muito bom! Abraços

Unknown disse...

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Caro Paradoxos,

Grato pela visita e obrigado pelo elogio.

Que seria de nós se não nos atrevessemos...? Ainda andávamos pendurados nas árvores... :)

Abraço

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Heduardo Kiesse disse...

Muito obrigado pela sugestão amigo José!! Tratarei de seguir o teu conselho e enviar um ou mais textos. Veremos no que vai dar,melhor, ouviremos
:-)
por acaso desconhecia o espaço. É de pessoas como tu que a blogaria precisa. Grato pela partilha amigo!

Edu

Heduardo Kiesse disse...

Ah voltei pra dizer que vou voltar mais vezes :-) amigo José

Unknown disse...

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Caro Edu,

Nada há a agradecer.
Aprecio imenso o trabalho do Luís Gaspar no Estúdio Raposa - muita carolice - além de achar que há em Portugal muita gente a escrever muitíssimo bem, como tu, e a merecer divulgação.


"... vou voltar mais vezes :-) "

A porta está aberta 24h por dia, 365 dias por ano (366 nos anos bissextos). :)

Abraço

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