sexta-feira, 13 de junho de 2008

o banco de jardim solitário

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Onde se situa a fronteira entre o estar e ser e o não-estar e não-ser? Talvez num instante que passa por um banco de jardim...
Recriação dum original de 14 de Julho de 1999.


O BANCO DE JARDIM SOLITÁRIO

Sentada no banco de jardim, à sombra dum enorme plátano, confortavelmente recostada, as elegantes e bem torneadas pernas cruzadas, deixando entrever ligeiramente a pele clara, jovial e macia das coxas, a jovem mulher modestamente vestida com roupa fresca adequada ao Estio, olhava fixamente em frente, parecendo esperar algo ou alguém, tal era a intensa ansiedade denotada na constância do seu olhar.

O banco onde ela estava era um banco magnífico, esplendoroso, estratégica, inteligente e apetitosamente bem colocado num jardim maravilhoso, inigualável.
Todo em fibra de carbono 3.ª geração, tinha mecanismos internos, imperceptíveis, computadorizados, de ajuste ergonómico e adaptava-se fisicamente ao peso e à configuração do corpo de quem se sentava nele.
O vetusto e matusalémico presidente da câmara não se poupava a esforços, nem poupava o dinheiro dos contribuintes, para lhes proporcionar o que de melhor e mais avançado a tecnologia tinha concebido. Por muito que isso delapidasse o erário público.
Podiam não ter mais nada, mas tinham jardins e soberbos bancos de fazer inveja!

A jovem mulher, de um pacote colorido que segurava na mão, retirava palitos de batata frita que levava à boca com ar evidente de satisfação, e que mastigava e engolia sem pressas.
Continuava com o olhar fixo em paralelo, quase não se mexia, excepção para a mão com a qual tirava as batatas do pacote e para os lábios mornos que entreabria ligeiramente para as comer.
Ali estava naquela imobilidade de quem espera e não desespera. O tempo passou lentamente.

Foi sem qualquer sinal de aviso, sem qualquer grito de dor que o corpo da jovem mulher se começou a desfazer.
Amoleceu como se feito de cera e começou a abater sobre si mesmo. A sua carne e os seus ossos liquefizeram-se, transformando-se numa pasta escura de aspecto sanguinolento que escorreu pelos interstícios para o chão pingando e formando uma poça no pavimento debaixo do banco. A roupa, vazia de um corpo, tombou nas pranchas do banco e apodreceu desfazendo-se em pó rapidamente como se por ela de súbito tivessem passado vinte séculos e desapareceu levada por uma aragem fresca de sueste que tinha vindo com o entardecer.


Da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco de jardim sobrou apenas aquela poça debaixo do sítio onde ela tinha estado, poça que mesmo ela não ficou ali por muito tempo.
O jardineiro tinha chegado arrastando uma comprida e pesada mangueira preta atrás de si para regar os canteiros, mantendo vivas as plantas.
Começou a regar os canteiros com grande cuidado e atenção, e reparando na poça avermelhada sob o banco dirigiu para ela o potente jacto de água, que arrastou aquela pasta, o que restava da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco de jardim, para a sarjeta de mistura com batatas que tinham caído no chão e algum lixo que escapara à passagem da vassoura automóvel.

Solitário, ficou o banco de jardim. À espera...


Oeiras, 12 Junho 2008
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2 comentários:

Isabel Magalhães disse...

Para quando bancos assim ergonomicamente concebidos áqui no concelho?

:D


[]

I.

Unknown disse...

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Pode ser que quem a gente sabe leia este 'instante' e se inspire... :)

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