sexta-feira, 27 de junho de 2008

o caixote de madeira

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Recriação dum instante cujo original data de 13 de Outubro de 2002.


O CAIXOTE DE MADEIRA

O caixote foi descarregado sem grande cuidado ou preocupação e arrumado a um canto onde ficou à espera que o fossem buscar. Era um caixote vulgar, de madeira, um pouco tosco sem pinturas ou etiquetas, de formato oblongo, com talvez 1,8 m. de comprimento e 70 cm. de largura por 50 cm de altura. Ninguém ali sabia quem o tinha enviado e quem era o destinatário ou o que continha. O que sabiam os que o tinham descarregado é que ele era incrivelmente pesado, como se estivesse cheio de chumbo. Tinham sido necessários oito homens robustos, dos mais fortes, para o retirar de cima da camioneta que o transportava e colocá-lo no chão no sítio onde se encontrava agora, já que o guincho que usavam para cargas e descargas estava avariado e tinham que trabalhar à força de braços.

Imóvel e silencioso estava o caixote a um canto, quando por ele passou o guarda Severino que fazia serviço de noite, conhecido no armazém pelos camaradas pelo "cornudo do Severino". O guarda Severino podia ser cornudo, o que até se percebia com a cara de cu à paisana e o ar seboso e permanente travo a cebola que ostentava, desagradável até para a própria mulher a qual achara que o vizinho do andar de cima, que por acaso até era possuidor dum Cortina vermelho, era melhor parceiro que o legítimo para o sexo oral, a julgar pelo que se ouvia comentar de quem garantia ter visto a dita com ele, ajoelhada num esconso do prédio. O importante é que o guarda Severino até podia ser cabrão, mas era um homem honesto e não tinha o hábito de mexer em nada no armazém. Fazia disso ponto de honra.

Naquela noite escura, quando passava uma ronda a altas horas, passou perto do caixote e casualmente apontou-lhe a lanterna e olhou-o. Ao olhar para ele uma brusca pressão cresceu-lhe no plexo solar e expandiu-se pelo corpo, pulsando nas têmporas, ribombando nos ouvidos. Sentiu um desejo irreprimível, irresistível de saber o que o caixote tinha dentro. Não conseguiu perceber o que lhe tinha provocado aquele desejo tão intenso. Não foi pelo aspecto do caixote que não tinha nada de estranho no meio de tantos similares, além de que, em doze anos de serviço naquele armazém, Severino tinha visto caixotes de todas as formas, cores e feitios, nunca tendo passado por uma situação daquelas. Nunca tinha sentido qualquer curiosidade em saber o que qualquer caixote, fosse qual fosse, pudesse conter, não era da sua conta, o que era uma forma de evitar tentações e problemas que lhe poderiam custar o emprego. Mas desta vez tinha acontecido.

Parecia-lhe que uma voz lhe falava ao ouvido e lhe sussurrava para abrir o caixote. Como se fazê-lo fosse uma obrigação moral, um imperativo. Estacou especado e assustado em frente ao caixote fixando-o hesitante. Da mão escorregou e caiu-lhe a lanterna que transportava e que bateu no chão de cimento com um som estridente, estilhaçando-se o vidro e apagando-se. Na súbita penumbra, Severino deu um pulo com o susto. Abanou a cabeça como para acordar. Não hesitou mais. Correu à sala das ferramentas, muniu-se de um forte pé-de-cabra e regressou rapidamente ao caixote. Introduziu a ponta do ferro numa greta no bordo da tampa e fez força, toda a força que podia. Nem acreditava no que estava a fazer. A tampa rangeu lugubremente e saltou com grande estrondo. O guarda Severino largou a ferramenta no chão, a qual provocou um sinistro ressoar metálico no silêncio do armazém, e acercou-se para mais perto do caixote para espreitar para o interior deste. Acendeu o isqueiro e, apesar da pouca luminosidade, conseguiu ter um vislumbre do que o caixote continha.

Perfeitamente arrumados, empilhados uns nos outros, centenas, talvez milhares, de pequeninos lingotes de chumbo cinzento enchiam completamente o caixote.


Oeiras, 26 Junho 2008
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sexta-feira, 20 de junho de 2008

barca de Caronte

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Um instante de 19 de Outubro de 2005, com ligeiros toques na ortografia. Uma brincadeira pseudo-surrealista de inspiração mitológica.


BARCA DE CARONTE

Atrevi-me. Sem bem perceber porquê, talvez um apelo insolúvel do ser que não é, atrevi-me.
Eu sabia que tinha que ir e para onde ir. Sabia-o há muito tempo. Talvez desde a última glaciação que o sabia. E sabia também com uma funda convicção que era apenas uma questão de atrevimento. Por isso, apesar de eu ser pouco atrevido, atrevi-me.
Saí daquele cubo rochoso de granito e emoções reprimidas que tinha sido a minha morada durante os últimos trezentos anos, olhei ao redor para a floresta imponente de acácias e fiz-me ao caminho. Pelo único caminho possível. O de Sueste.

Avancei pela picada, apesar de a temer minada. Contudo, eu acreditava que os meus pés sentiam a presença do solo seguro e sabiam por si mesmos escolher os pontos seguros para se apoiarem. Afinal, ora gaita!, aquela mesma picada tinha sido usada por Zaratustra quando este desceu da montanha.
De qualquer forma, não teria graça nenhuma ouvir-se (ouve-se?) um grande estrondo de súbito e o meu corpo ser espalhado em dezenas de fragmentos em todas as direcções. Não me apetecia mesmo nada. Ainda por cima, ao que sei pelo que já vi de mim mesmo, os bocados do meu corpo destroçado assemelhar-se-iam a pedaços de carne crua de galinha. É feio e não tem estética nenhuma.

Cheguei já de noite muito nocturna. Estava frio e não havia brisa nenhuma. A margem era carregada de dor moliçada sobre a areia. Ouviam-se grilos restolharem as ervas ralas e secas e correrem esbaforidos, assustados por algum ser de outro tempo. Talvez eu.

A prancha de madeira escorregadia envaginava-se literalmente na água tal era a sua inclinação. A seu lado observava-se o tenebroso e negro vulto baloiçante da gigantesca barca. Ocorreu-me que nenhum ser deste mundo seria capaz, sem ajuda, de a manobrar. Apenas forças extraterrenas o conseguiriam fazer. Ou diabólicas.

Avancei pé ante pé, cuidadosamente, temendo escorregar e cair na água negra e escura, que eu sabia infestada de lagostas corticeiras. Seria o meu fim. E seria triste. Após ter vencido a perigosa e traiçoeira picada, acabar os meus dias diarreicamente embuchado, mesmo junto à meta.
Consegui não cair e agarrei-me à amurada da embarcação. Num atlético salto digno de um olímpico saltei por cima desta e aterrei no convés.
Assim pus pela primeira e última vez o pé na barca.

Logo que o fiz uma forte dor acometeu-me as entranhas. as vísceras revolucionaram-se-me como uma assembleia de anarquistas, agitados ante a excitação das bombas. Mas procurei acalmar-me. Consegui.
Levantei a cabeça e vi-o.

Caronte olhou-me nos olhos e sorriu. Detestei o seu sorriso. Pareceu-me cínico. Como se me quisesse dizer que algo estava fora do lugar. Mas eu sabia que o cometa continuava a sua excêntrica rota sem desvios.
Apesar do nome, cometa, o pobre astro não é dado a pandeleiragem. E por isso não se desvia da rota e segue o seu rumo como uma freira vestida de negro, que ama a Cristo e não cede às tentações da carne.
Hei-de um dia tentar definir esta relação entre 'tentação' e 'carne'.

Sentei-me à espera que Caronte fizesse alguma coisa. O bruto espetou a grossa e comprida estaca no fundo lodoso e empurrou com gana.
A barca começou a mover-se lenta. A água marulhou à proa.

Olhei em torno de nós.
A escuridão envolvia-nos como um nevoeiro negro, como se alguém tivesse derramado tinta de um milhão de chocos na atmosfera.
Não se via nada. Também nada havia para ver.


Oeiras, 12 Junho 2008
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sexta-feira, 13 de junho de 2008

o banco de jardim solitário

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Onde se situa a fronteira entre o estar e ser e o não-estar e não-ser? Talvez num instante que passa por um banco de jardim...
Recriação dum original de 14 de Julho de 1999.


O BANCO DE JARDIM SOLITÁRIO

Sentada no banco de jardim, à sombra dum enorme plátano, confortavelmente recostada, as elegantes e bem torneadas pernas cruzadas, deixando entrever ligeiramente a pele clara, jovial e macia das coxas, a jovem mulher modestamente vestida com roupa fresca adequada ao Estio, olhava fixamente em frente, parecendo esperar algo ou alguém, tal era a intensa ansiedade denotada na constância do seu olhar.

O banco onde ela estava era um banco magnífico, esplendoroso, estratégica, inteligente e apetitosamente bem colocado num jardim maravilhoso, inigualável.
Todo em fibra de carbono 3.ª geração, tinha mecanismos internos, imperceptíveis, computadorizados, de ajuste ergonómico e adaptava-se fisicamente ao peso e à configuração do corpo de quem se sentava nele.
O vetusto e matusalémico presidente da câmara não se poupava a esforços, nem poupava o dinheiro dos contribuintes, para lhes proporcionar o que de melhor e mais avançado a tecnologia tinha concebido. Por muito que isso delapidasse o erário público.
Podiam não ter mais nada, mas tinham jardins e soberbos bancos de fazer inveja!

A jovem mulher, de um pacote colorido que segurava na mão, retirava palitos de batata frita que levava à boca com ar evidente de satisfação, e que mastigava e engolia sem pressas.
Continuava com o olhar fixo em paralelo, quase não se mexia, excepção para a mão com a qual tirava as batatas do pacote e para os lábios mornos que entreabria ligeiramente para as comer.
Ali estava naquela imobilidade de quem espera e não desespera. O tempo passou lentamente.

Foi sem qualquer sinal de aviso, sem qualquer grito de dor que o corpo da jovem mulher se começou a desfazer.
Amoleceu como se feito de cera e começou a abater sobre si mesmo. A sua carne e os seus ossos liquefizeram-se, transformando-se numa pasta escura de aspecto sanguinolento que escorreu pelos interstícios para o chão pingando e formando uma poça no pavimento debaixo do banco. A roupa, vazia de um corpo, tombou nas pranchas do banco e apodreceu desfazendo-se em pó rapidamente como se por ela de súbito tivessem passado vinte séculos e desapareceu levada por uma aragem fresca de sueste que tinha vindo com o entardecer.


Da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco de jardim sobrou apenas aquela poça debaixo do sítio onde ela tinha estado, poça que mesmo ela não ficou ali por muito tempo.
O jardineiro tinha chegado arrastando uma comprida e pesada mangueira preta atrás de si para regar os canteiros, mantendo vivas as plantas.
Começou a regar os canteiros com grande cuidado e atenção, e reparando na poça avermelhada sob o banco dirigiu para ela o potente jacto de água, que arrastou aquela pasta, o que restava da jovem mulher que comia batatas fritas sentada no banco de jardim, para a sarjeta de mistura com batatas que tinham caído no chão e algum lixo que escapara à passagem da vassoura automóvel.

Solitário, ficou o banco de jardim. À espera...


Oeiras, 12 Junho 2008
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sexta-feira, 6 de junho de 2008

o barracão abandonado

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Um instante cujo original está datado de 13 de Outubro de 2002, um daqueles textos escritos pelo puro gozo de escrever, sem esquecer algumas referências pessoais...


O BARRACÃO ABANDONADO

Era uma fria manhã de inverno português. O nevoeiro cerrado espalhava-se por todo o lado como uma mortalha branca e gelada dificultando a visão. O duro vento norte, frio e cortante, soprava com força abanando as ramagens das árvores e fazendo gemer algumas mais grossas e alguns troncos. Aquele campo estava abandonado há muito tempo, muito, muito tempo, o que era perceptível no espantalho caído, no muro meio destruído e nas plantas daninhas que cresciam por todo o lado, tomando conta do campo, dos muros, dos troncos. O ar de abandono fazia daquele campo, outrora vivo e belo uma coisa fria, desolada, triste e lúgubre.

Como desolado e sinistro era o barracão de madeira que se sentia numa das margens do campo. Fora abandonado juntamente com a terra quando os homens abandonaram para sempre a agricultura natural no período da Grande Crise, deixando os campos e partindo para as cidades de aço, vidro e plástico. As ervas trepavam loucas e livres pelas suas paredes apodrecidas de muitos invernos. A porta estava fechada com uma fechadura de ferro enferrujada, carcomida pelas intempéries, da qual de vez em quando se soltavam pedaços e lascas de óxido de ferro. Ninguém entrava nele há muito tempo. Nem entraria, pois não havia quem tivesse interesse em fazê-lo ou alguém para o fazer. Por isso não existia pessoa alguma que soubesse o que lá dentro se guardava.

Várias caixas de madeira cuidadosamente empilhadas umas sobre as outras enchiam quase metade do barracão. As etiquetas que identificavam as caixas tinham-se descolado havia muitos anos devido à humidade e estavam sujas, rotas e espalhadas pelo chão. Se alguém abrisse uma daquelas caixas teria a extraordinária surpresa de encontrar dentro dela velhas garrafas escuras de vidro, de secção quadrada, das que se usavam no século vinte. E se tirasse uma dessas garrafas para fora teria a surpresa de ler no rótulo o nome Jack Daniel's...

Um nome que só teria significado para algum expert, que reconheceria aquele que era naquele tempo, sem dúvida, o melhor whiskey do Tenessee.

Oeiras, 06 Junho 2008
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