sexta-feira, 28 de dezembro de 2007

Agostinho e o espelho de Alice

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Esta 'brincadeira', "O Espelho e o Pé-de-Cabra" na versão original, data de 12 de Outubro de 2002. Após reler o texto, senti vontade de pegar nele e desenvolvê-lo um pouco mais. Torná-lo mais apetitoso para o leitor.


AGOSTINHO E O ESPELHO DE ALICE

Agostinho, piscando os seus olhinhos de rato sodomizado, olhou a superfície lisa e espelhada à sua frente na qual a sua imagem reflectida olhava para ele.

Aquela superfície que era e não era um espelho, como se verá.

Era um espelho na medida em que reflectia imagens mas não era um espelho, de acordo com os terríveis acontecimentos que iriam acontecer.

Era um espelho de grande dimensão e Agostinho comprara-o há uns anos num vidraceiro de Xabregas, por uns cobres valentes, apesar de se estar a cagar para espelhos, mas na altura vivia com uma gaja em casa, a Alice caolha, uma putéfia que sacara nas docas, e as gajas gostam de se ver ao espelho.

Queres mamada... compra um espelho!

A Alice caolha, um dia, acabara por basar, levando com ela um coelho branco de estimação e um baralho de cartas espanholas, pois arranjara um gajo com mais bago, mas o espelho ficara.


Agostinho fixou a sua imagem na superfície do dito.

O espelho, mais ou menos do tamanho de uma porta, estava fixo à parede do quarto com o bordo inferior muito perto do chão o que permitia a uma pessoa de estatura mediana ter nele uma imagem de corpo inteiro.

No fundo, era um espelho baril e Agostinho já se tinha habituado a ele.

Contudo havia algo de estranho na imagem reflectida pelo espelho que não era espelho.

Via-se a si próprio e o quarto onde estava.

Mas tinha a sensação de que a imagem que via no espelho tinha algo de errado.

Pôs-se a olhar atenta e fixamente.

Olhou o seu rosto gordo de labrego.

Era o rosto largo e generoso de um homem de vinte e oito anos.

Um rosto cheio, com maçãs rosadas que herdara do seu pai que tinha sido taberneiro e proxeneta em Alfama.

Os olhos azuis herdara-os da mãe, transmontana raiana, criada-de-servir em casa dos avós dele, donos de uma pequena quinta nos arredores de Lisboa, ali para as bandas de Oeiras, onde aliás todos tinham vivido depois de ele nascer fruto das aventuras nocturnas de seu pai no quarto da criadita então com apenas uns frescos e saborosos dezasseis anos e cheia de ingenuidade serrana face ao jovem belo e fogoso de dezoito anos, que fora o seu pai, ainda por cima filho dos patrões.

Assim ele nascera e os pais foram obrigados a casar porque a avó, mulher barbuda e de calibre, não admitia poucas-vergonhas em casa e com os garotos casados não havia motivo para falatórios.


Olhou-se de alto a baixo.

A roupa com que estava vestido era modesta, nunca fora de grandes luxos.

Umas calças de fazenda cinzentas a ficarem puídas nos joelhos, uma camisa azul aos quadrados com as mangas arregaçadas pelos antebraços, gravatas nem pensar, nunca usara, nem sabia fazer o nó.

Na cabeça usava um boné castanho de tecido inglês que herdara também do pai e que tinha seguramente mais de vinte anos.

Nos pés calçava botas de couro tipo 'bota alentejana'.

Sem dúvida fazia jus ao seu eterno ar de campónio!

Mexeu uma das mãos e viu a correspondente no espelho mover-se.

Estendeu a mão para tocar o espelho e a mão reflectida no espelho avançou sincronizada ao encontro da sua.

Viu os dedos tocarem-se quando os seus dedos tocaram a superfície do espelho.

O contacto foi frio como gelo gelado.

Não foi isso que o admirou.

Afinal os espelhos são feitos com vidro.

O que o deixou atónito e atemorizado foi que metade dos seus dedos desapareceram para além da superfície.

Puxou a mão bruscamente, assustado.

Pensou que os seus olhos o tivessem enganado.

Voltou, com muitas cautelas, a aproximar a mão da superfície do espelho e de novo tocou-lhe, ou melhor, tentou tocar-lhe.

Viu os dedos penetrarem a superfície do espelho e desaparecerem.

Retirou a mão rapidamente.

Não havia dúvida, acontecera mesmo!

Recuou aterrado, de olhos esbugalhados e pêlos do pescoço ouriçados, a olhar para o espelho.

Que fazer?!

O melhor era talvez destruir aquela coisa demoníaca.


E para isso saiu decidido do quarto, correu para a despensa e muniu-se de um valente pé-de-cabra.

Voltou ao quarto, chegou-se ao espelho e empunhando o pé-de-cabra com as duas mãos, levantou-o e desferiu uma pancada violenta no espelho, onde outro Agostinho realizava precisamente a mesma acção na direcção oposta...

Mas não se ouviu o característico som de vidros a partirem-se.

O pé-de-cabra penetrou a superfície do espelho, como se esta fosse líquida, com o impulso soltou-se das mãos de Agostinho e desapareceu sem que um som se ouvisse.

Agostinho sentou-se sobre a cama emudecido, terrificado, e sem saber o que fazer.

Ali ficou durante muito tempo, tentando perceber o que acontecera e o que poderia fazer para se desfazer do espelho e pôr termo aquela coisa horrenda.

Subitamente apercebeu-se de um movimento do lado do espelho e olhou na direcção daquele.

O pé-de-cabra, o seu pé-de-cabra, saia do espelho e vinha lançado a grande velocidade na sua direcção.

Bem tentou, mas... não conseguiu fugir a tempo de evitar ser atingido e levou com o ferro em cheio na cabeça caindo para trás a sangrar abundantemente e desmaiou tombando no chão.

Na superfície do espelho, vinda do outro lado, emergiu espreitando a cabeça de um ser de aspecto vagamente humano, olhar sinistro, cabeça essa cheia de ligaduras presas com largos adesivos.

O ser olhou Agostinho caído no chão, sorriu-se piscando os olhos e disse na sua língua incompreensível:

— Toma lá ó cabrão p'ra ver se gostas! Vai dar com o ferro nos cornos do teu pai!


Oeiras, Dezembro 2007
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6 comentários:

Anónimo disse...

Nunca duvidei do teu poder na Escrita...Parabêns e que o ano 2008 te traga só coisas boas!! :-)

Boa continuação de Trabalho Artístico!
Bjs

Maria (ex-Sulista) ;-)

Menina Marota disse...

eheheheh...vou passar a ter mais cuidado com os espelhos...

Gostei de ler este humor...

Um abraço e FELIZ ANO NOVO

Unknown disse...

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Olá Maria (ex-Sulista) ;-)

Grato pelo elogio.

O 'trabalho artístico' anda por baixo, por falta de tempo.
Outros afazeres... é preciso ganhar o pão nosso de cada dia...

Endereço-te também Votos de um GRANDE 2008 cheio de coisas BOAS !

bjs

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Unknown disse...

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Olá Menina Marota,

Pois... os espelhos têm DOIS lados... AH AH AH

Desejos de um FANTÁSTICO 2008 !!

bjs

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Isabel Magalhães disse...

Adoro contos do 'surreal'...! :)




bj
I.

Unknown disse...

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Olá querida Isabel,

So do I, so do I ! :)))

'Surreal, irreal, real, neo-real, ultra-real, hiper-real...'

Out (?) of this world.
O mundo do avesso. Eheh...

bjs

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