quinta-feira, 3 de abril de 2008

o restaurante da Jaquina

.
Este instante foi escrito na sua versão original em 16 de Março de 2004.
Agora vê a luz do dia reescrito numa versão mais desenvolvida e, espero, mais divertida.
É um clássico, pelo menos nas três palavras com que começa a estória: "Era Uma Vez..."


O RESTAURANTE DA JAQUINA

Era uma vez... Uma menina muito feiinha.

Era tão feia, tão feia, que todos lhe chamavam 'cagona'.
Não que fosse uma criança pedante ou convencida, casos em que se costuma utilizar tal adjectivação. Não, nada disso. Era mesmo e só por ser muitíssimo feia.
Estatura um pouco baixa para a idade, gorda numas zonas do corpo e magra noutras, com braços demasiado curtos e pernas gordas, cambadas, os joelhos eram estranhamente ossudos. As suas nádegas eram grandes como duas melancias, acima das quais, um pouco abaixo do pescoço, uma giba dava os primeiros sinais de vida. Tinha cabelo amarelado, terroso, e rebelde que, mesmo depois de lavado, parecia sempre sujo, a enquadrar um rosto acnoso preenchido por um par de olhos de carneiro mal-morto, um nariz largo e adunco com uma verruga na aba direita, um par de orelhas das chamadas 'de abano', e uma boca de lábios grossos e carnudos cor de figo, lascivos, invulgares em alguém tão jovem. A sua pele, sempre vermelhusca, contribuía grandemente para lhe dar um ar de saloia e andava sempre cheia de mazelas e nódoas negras.
Afrodite estava certamente ocupada com outros afazeres - os deuses são gente muito trabalhadeira - no instante em que o desabrido espermatozóide paterno cravou a cabecita no pudente óvulo materno.

— CAGONA! CAGONA! CAGONA! JAQUINA CAGONA, CAGALHONA! CARA DE CU, CARA DE CONA! — apupavam na escola primária as outras crianças. As bem educadas porque o que diziam as outras, os filhos dos campónios, escusamo-nos de referir...

Ela reagia com se calcula. Reagia à pedrada! Dentro do possível, que os seus bracinhos curtos e corpo desequilibrado não lhe permitiam grande pontaria.
Mas lá ia conseguindo de vez em quando partir uma ou outra cabeça, cujo legítimo proprietário desatava numa correria danada em direcção a casa, a pingar sangue da moleirinha, e num berreiro que parecia de cabrito perdido, a gritar pela progenitora. E muitos deles, de facto, tinham umas mães que eram umas cabras...
Depois? Bem, depois lá vinha um valente par de bofetadas - por só ter acertado uma pedrada naqueles filhos da puta...

O nome verdadeiro dela era Maria Joaquina Simões da Purificação Abreu e a mãe dela era a dona Manuela Evangelista da Purificação, a 'Nela Maneleira das Fífias', que tinha uma banca de frutas na Praça de Oeiras, e que também vendia castanhas assadas e tremoços nas épocas. O pai era o sor Manuel Simões Abreu, o Manel Abreu "ABRE O CU QUE LÁ VOU EU", como diziam os catraios, o que o fazia perder as estribeiras e, no meio duma tremenda expectoração e insultos, atirar na direcção deles tudo o que tivesse à mão, nem que fossem as verrumas, os formões ou os martelos, serrotes e tábuas, e que era marceneiro de madeiras e similares com carteira profissional e tudo.

A menina cresceu e fez-se mulher.
Acontece a todas as meninas. Crescem e fazem-se mulheres.
Feia que nem um cu à paisana, mas mulher! Mulher feia. Feita.
Melhor dizendo, na verdade os amigos dela, e alguns camionistas que paravam na bomba do Sebastião para abastecer e petiscavam no tasco da Rata, é que a fizeram mulher.
E o quanto eles se esforçaram para isso! Empenharam-se esforçadamente nessa tarefa, às vezes até em grupo e à vez. Aliás, ninguém como os amigos dela para lhe gabarem as beiças generosas, as tetas vivazes, a badófia gordurosa - que ganhou o epíteto de 'três cus' - e outros atributos que muito contribuiram para que esses amigos passassem a acreditar que existia um Deus.

Um dia ela, com dinheiro que ganhara a ajudar a mãe na banca da praça e na venda das castanhas, tremoços e amendoins, abriu um pequeno restaurante - talvez por ter tomado o gosto de abrir alguma coisa...
Numa velha casa térrea a cair aos pedaços e que já ninguém habitava, porque a velhota que lá morara tinha morrido há muito e a casa era usada como abrigo por drogados e gente sem abrigo que nela pernoitava. Casa que um dia um herdeiro da velhota, um advogado a viver no Fundão, tinha posto à venda.
Ela ia a passar e viu na casa o cartaz pendurado que anunciava a venda e decidiu aproveitar a oportunidade.
Telefonou para o número de telefone que estava no cartaz, falou com o vendedor, acertaram o preço, fizeram a escritura e ela ficou proprietária da casa.
Claro que foi só o começo. Foi preciso tratar dum monte de papelada e gastar mais uma montanha de dinheiro e tempo, até a casa estar arranjada em condições e o modesto restaurante pronto para ser inaugurado e entrar em funcionamento. Mas lá aconteceu.
Jaquina, fazendo jus ao seu passado e ao jeito de homenagem a todos os seus amigos pôs ao restaurante um nome bem bonito:

"RESTAURANTE JAQUINA CAGONA - VINHOS E PETISCOS".


Oeiras, 22 Março 2008
.

Sem comentários: