terça-feira, 14 de outubro de 2008

pharmacia

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PHARMACIA

No adormecer do dia, naquele momento em que as sombras se alongam pressurosas, as enormes, estranhas e sobre-dimensionadas, letras verdes moviam-se garrafais incongruentes, através do letreiro luminoso gritando 'PHARMACIA'.
Se dúvidas houvesse, nem era preciso chegar perto e cheirar o ar para saber que ali naquela porta, transpondo-a, abaixo do reclame, existia um estabelecimento de comércio de drogas e similares.

Apressada, aos tropeções em cima dos saltos finos e exagerados que desestabilizavam o andar na velha calçada irregular, arfando e bufando como um animal, esfolando as biqueiras que em tempos tinham sido vermelho-rubro, com a mala de plástico dourada e alça preta a condizer, comprada na feira de São Domingos de Rana, dirigiu-se para a porta que se abriu automática com um suave zunido.
Da maquineta à entrada, após pressionar o botão, extraiu a senha que indicava a sua vez: B - 000 - 742.835 ± 1.

Só então, após um fortemente expirado suspiro, relaxou, avançou e observou o interior intensamente iluminado do moderno estabelecimento.
Estavam apenas três pessoas, naturalmente clientes para atendimento.

Próximo ao balcão, um jovem louro com ar de surfista, de t-shirt amarela e calças bege, olhava curioso o expositor de cremes para o acne, coisa que ele não tinha. Parecia enervado pois batia ritmicamente com a ponta do chanato no chão como se acompanhasse uma música que só ele ouvia.

Viu também, sentada numa cadeira estofada com pele de canguru alentejano, uma velhota alquebrada, vestida de escuro e completamente careca, apoiada numa bengala com castão de terracota, que rolava entre os dedos duma mão um preservativo colorido como se brincasse com um berlinde.

Viu ainda um senhor de meia idade, bem vestido, de blazer verde alface, quadriculado, camisa azul com bolas roxas, gravata e calções riscados, chinelas havaianas, ao balcão a ser atendido. Ao que lhe parecia pelo que podia divisar do ponto onde se encontrava, este senhor tinha levado uma receita de dois pratos de "Dobrada com Feijão Branco", que o técnico ajudante lhe colocara à frente, fumegantes, e se preparava para acondicionar num pequeno saco com o logotipo da farmácia.

Além dos três clientes estavam ainda os vinte e quatro farmacêuticos, técnicos e ajudantes de farmácia, de ambos os sexos, nas suas impecáveis batas brancas, distribuídos ao longo do balcão, impávidos e serenos, como múmias egípcias.

Aguardou com um misto de horror e nervosismo que os números de chamada mudassem. O acaso é determinante da vida. Nisto de displays nem tudo o que parece é... nem tudo o que brilha é algarismo... Nem tudo o que luz reflecte a essência cósmica do ser...

Passadas cerca de duas horas o senhor de meia idade acabou de ser atendido e pegando no saquinho com as duas Dobradas, deu as boas noites e saiu.
As outras duas pessoas, o jovem surfista de amarelo e a velhota do preservativo foram de seguida atendidos. Pelo mesmo farmacêutico e à vez. Os outros farmacêuticos, parecia, estavam ali só para vista. Eram uma espécie de guarda de honra hierática.

O jovem surfista limitou-se a pedir duas molas de roupa para pendurar os calções de banho, e o atendimento foi rápido, pouco mais de uma hora. Foi o tempo de ir ao quintal nas traseiras cortar um pinheiro, tirar o pedaço de madeira necessário, talhar as peças, colocar-lhes as molinhas metálicas e pronto.
O rapaz pegou no saco após pagar e desapareceu rapidamente.

A idosa é que demorou um pouco mais, pois não tinha com ela os óculos de mergulho nem as barbatanas, e o microscópio electrónico estava avariado, pelo que foi preciso chamar os engenheiros químicos, que demoraram uma boa meia hora a enviar um carro patrulha, para levarem a velha senhora à praia onde ela poderia ir apanhar berbigões e amêijoas na maré baixa.

Ela continuou à espera da sua vez.
Finalmente os algarismos, romanos, no painel luminoso mostraram o número da sua senha. Não mostraram os zeros, pois os romanos não o tinham. Mas subentendiam-se sob o nevoeiro denso, esverdeado e húmido. Era a sua vez.
Dirigiu-se ao balcão e apresentou a senha e a receita, ao mesmo tempo que cumprimentava o farmacêutico:

— BOA TARDE, SEU SACRISTA BARDAMECA!

O técnico farmacêutico olhou-a, esticando-se sobre o balcão para, atrevido, lhe espreitar as pujantes e grandes mamas, e correspondeu com um sorriso lascivo ao cumprimento:

— BOAS TARDES, DONA FLAUSINA! EM QUE POSSO AJUDÁ-LA? VIVA O XÔ ZÉ!

— VIVA MAS É OS TOMATES...! AVIE-ME LÁ ESTA GAITA!

— DESCULPE, MAS GAITAS JÁ NÃO TEMOS, ESGOTARAM. DEIXE ENTÃO VER O QUE TEMOS AQUI.

O farmacêutico agarrou os dois papéis que ela lhe estendia, colocou a receita sobre o balcão e mostrou a senha ao colega do lado para confirmar se o número estava mesmo certo com o do painel, no topo da ondeante colina.

— ESTÁ. — Disse o outro, que era licenciado em Filologia Românica e Mestre em Gestão de Campos de Golfe.

Pegou novamente na receita, leu-a atento franzindo a testa, olhou a cliente e cravou-lhe o olhar intensamente nos olhos, o que a fez tremer da cabeça aos pés como varas verdes, olhou de novo a receita e dirigiu-se ao interior da farmácia, no que foi acompanhado por todos os seus colegas, que o seguiram em fila indiana balouçando para a esquerda e para a direita como pinguins da Adélia, acompanhando a suave ondulação do mar.

Voltaram passada uma hora. O técnico dirigiu-se a ela:

— PARECE QUE TEMOS AQUI UM PROBLEMAZINHO... — Resmungou entre dentes.

— ORA ESSA! PROBLEMA PORQUÊ?! — Questionou ela, estremecendo, assustada e preocupada.

— PROBLEMA PORQUE O SEU CARTÃO DE CLIENTE DO EL CORTE INGLÉS ESTÁ NO SISTEMA INFORMÁTICO REFERENCIADO COMO PERTENCENDO A UMA TERRORISTA DO GANG AFONSINO — Esclareceu ele com toda a calma, sem pestanejar.

Ela olhou-o incrédula sem saber o que dizer e balbuciou uma desculpa:

— TE TE TE TERR TERRORI TERRORISTA! EU?! AI MEU DEUS! VOCÊS MATAM-ME DO CORAÇÃO! — Disse aterrada.

— SIM, SENHORA. E A BRIGADA JÁ VEM A CAMINHO PARA A MATAR! — Esclareceu, com voz grave e sinistra, o farmacêutico.

— FÓNIX!! VOCÊS SÃO MESMO BERAS! TUDO ISTO SÓ POR CAUSA DUMA RECEITAZINHA DE MEIA DOSE DE MÃO DE VACA COM GRÃO! — Gritou ao técnico farmacêutico, já histérica e a tremer, de cabeça completamente perdida.

— SÃO ORDENS SUPERIORES, MADAME, E SERVIÇO É SERVIÇO E CONHAQUE É CONHAQUE! — Respondeu-lhe o técnico farmacêutico, começando a desabotoar a bata.

— O QUE É QUE O SENHOR ESTÁ A FAZER? — Perguntou ela, ao vê-lo começar a desapertar o cinto das calças e a braguilha.

— NADA DE MAIS, DONA, APENAS ESTOU A DESNUDAR-ME E ACONSELHO-A A FAZER O MESMO, PARA APRECIARMOS O QUE AÍ VEM, EM TODA A SUA NUDEZ! CRUA, PURA E DURA! —Disse ele, um pouco irritado.

— DISPO-ME MAS É O CARAÇAS! O TANAS! PENSAS QUE SOU A TUA MÃE?! — Gritou-lhe ela, histérica.

Os outros farmacêuticos e farmacêuticas tinham seguido o exemplo do colega e tinham-se também desnudado. As batas, impecavelmente brancas, e as roupas, espalhavam-se pelo chão atrás do balcão. Alguns e algumas estavam já completamente nus.
Ela seguiu a sugestão. Se não os podes vencer, junta-te a eles... e, após um encolher de ombros, desnudou-se em toda a sua paupérrima beleza esquelética suburbana.

De súbito ouviram-se sirenes uivarem sinistras na noite negra. A noite dos cães. Os vidros das montras estremeceram.
Um chiar de pneus no exterior anunciou a chegada das autoridades.
No interior, todos os presentes ficaram imobilizados, na expectativa.

Uma boa meia dúzia de polícias fortemente armados com shotguns, acompanhados de caniches brancos de pêlo bem aparado, entraram de rompante no estabelecimento, vociferando ordens, e desordens, em todas as direcções.
Rapidamente imobilizaram toda a gente, encostando todos contra as prateleiras, armários e paredes, de braços levantados e pernas afastadas.

O que parecia comandar a força de intervenção, pois trazia uma pena de pavão na mão e outra de peru no cu, saltou para cima do balcão, num pulo atlético, e gritou:

— SILÊNCIO!

Todos emudeceram no silêncio em que já se encontravam, pois estavam de tal modo aterrorizados que não eram capazes de dizer uma palavra que fosse.
O presumido chefe mandou avançar a suspeita de terrorismo:

— CHEGA À FRENTE, TU AÍ, CADELA! —Gritou com caucasiana arrogância trovejante.

Ela acercou-se do balcão tremendo. O ambiente era pesado, denso, de cortar à faca.

— COMO TE CHAMAS? — Vociferou, do alto do balcão, peanha improvisada.

— MA MA MARIA ALICE — Respondeu a medo.

— MARIA ALICE QUÊ?! — Vociferou, mostrando os caninos afiados.

— GODOFREDO. MARIA ALICE GODOFREDO — Respondeu, prestimosa e temente.

— AH! GODOFREDO. A QUE TEM UM CU QUE METE MEDO! — Estrondeou a voz do chefe com um grande sorriso nas beiçolas lúbricas.

Neste entretanto e de súbito as luzes apagaram-se e fez-se escuridão absoluta. Todos fizeram silêncio.
Alguém gemeu baixinho.
Na escuridão, percebia-se a respiração rápida e ofegante dos presentes.
Ouviu-se o som de muitos passos apressados que pareciam ir na direcção da porta.
A escuridão tornava-se opressiva. Doía.

Uns três ou quatro minutos depois a luz voltou. As lâmpadas tremeluziram tímidas e acenderam-se. A farmácia estaria vazia, completamente vazia, não fosse a presença dela, sozinha de pé no meio do estabelecimento.

Lentamente olhou em torno de si. Nas mãos apertava contra o peito nu a mala dourada que entretanto, no escuro, conseguira apanhar do chão.
Apesar de se sentir paralisada pelo medo, ganhou forças para andar e dirigiu-se ao fundo do estabelecimento.
Cautelosamente espreitou para a dependência das traseiras. Também ela estava vazia, não estava lá ninguém.

Fez meia volta e dirigiu-se para trás do balcão, onde constatou que aí não existia vivalma. Apenas viu as roupas espalhadas pelo chão.
No resto do estabelecimento, onde ela tinha estado, viam-se espalhadas as roupas, couraças, escudos, cintos, botas e armas dos agentes.

Pé ante pé foi até à porta de entrada, a qual se abriu automaticamente assim que dela se acercou.
Espreitou para o exterior. Continuava noite, mas os candeeiros públicos davam luz suficiente para perceber que não havia pessoa alguma na rua.

Também não havia qualquer sinal das viaturas da polícia, ou outras viaturas quaisquer.
Parecia que toda a gente se tinha eclipsado.
Viu apenas um gato famélico cinzento a correr através da rua em direcção a um contentor de lixo. Certamente fugira do Gatil do Jardim Municipal.

Rapidamente voltou para o interior pois a noite estava fresca, húmida, e ela não tinha nada vestido.
Procurou as suas roupas e vestiu-se apressada. Tal foi a precipitação que vestiu as cuecas do avesso, mas não se incomodou. Queria era sair dali rapidamente.

Sem olhar para trás, saiu da farmácia e dirigiu-se à paragem da camioneta, onde se sentou no banco. Ainda ia ter que esperar um bom bocado. Eram duas da madrugada e a camioneta só viria às sete e meia.

Afinal, não teve que esperar tanto. Pouco depois aparecia a camioneta.
Estranhamente esta era branca, quase não tinha janelas e o motorista usava uma bata branca.
Calmamente, entrou e sentou-se num lugar vago, junto de outros passageiros.
Pouco antes de entrar na camioneta ainda teve tempo para olhar de soslaio na direcção do estabelecimento. As letras verdes, garrafais, continuavam a correr o painel luminoso, dizendo o mesmo de sempre:

— PHARMACIA...

A notícia saiu nos principais jornais diários e televisões no dia seguinte.
Um grande grupo de doidos varridos tinha conseguido evadir-se dum manicómio, os doentes andaram nus pelas ruas, assaltaram uma farmácia, roubaram um carro da polícia, alguns tinham-se mascarado de polícias, e um deles tinha mesmo conseguido fazer-se eleger Presidente da Câmara. Com os votos dos outros malucos todos, é claro!

Oeiras 14 Outubro 2008
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as 'férias' já eram...

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Caros,

Em primeiro, esperamos que as Vossas férias tenham decorrido da melhor forma e tenham sido agradáveis, que tenham mesmo excedido as vossas maiores e melhores expectativas.

Como diz o bom povo português: "Não há mal que sempre dure, nem bem que não se acabe".
Haverá melhor forma de exemplificar esta máxima, que um período que abusivamente designámos de 'férias', e que foi tudo menos tal?!
Sim, pois que férias a sério é fazermos tudo o que não fazemos ao longo do ano, como seja descansar, divertir, ir conhecer outras paragens, viajar, fazer amigos, encontrar novos amores, fazer praia, fazer jantaradas com amigos, assistir a espectáculos, visitar museus, etc.
Confessamos que este período de pausa, não tão curto quanto pretendíamos, apenas o foi (pausa) aqui no INSTANTES, pois os dias decorreram como habitualmente, com muito trabalho, muitas actividades correntes e usuais que já vínhamos a desenvolver, pouco sono, má alimentação, nada de praia, de descanso, e por aí afora.
Ou seja, do que vínhamos desenvolvendo a única actividade efectivamente interrompida foi a escrita aqui no INSTANTES. Se isto são férias, vou ali e já venho...

Agora, o que nos interessa, e interessa aos visitantes deste blog, é que essa pausa acabou. Estamos de novo aqui, prontos para vos assediar com os nossos escritos.
Apenas uma alteração irá ser feita em relação ao esquema que estávamos a utilizar, que consistia na publicação regular semanal, em geral à sexta-feira, dum novo texto.
Agora não haverá calendarização. As novas prosas poderão aparecer em qualquer dia e mesmo mais que uma por dia ou por semana. Serão publicadas de acordo com o ritmo em que forem sendo escritas e produzidas.
Continuaremos, como temos feito, a notificar-vos por email a cada nova publicação.


Quem estiver interessado em receber notificações por email, nem que seja para apenas vir cá só quando houver novidades, faça-me chegar um pedido por email. O meu endereço está acessível no meu perfil completo.

E porque se faz tarde... já de seguida vai um novo conto que, espero, seja do Vosso agrado.

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sexta-feira, 22 de agosto de 2008

instantes de férias

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Caros,
Como achamos que também temos direito a um pouco de descanso, que isto de escrever todas as semanas dá cabo da moleirinha a qualquer um, o INSTANTES vai fazer uma curta pausa para retemperar os neurónios. O Tico e o Teco já andam meio baralhados e agradecem...

Fiquem por aí, voltamos em breve. Até lá:

Boas Férias para todos!
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quarta-feira, 20 de agosto de 2008

lugar aos poetas

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recebido via email com pedido de publicação:


As Torres do Isaltino Morais

O Isaltino Morais que é tio,
Quer lotear a fundição de Oeiras.
No lugar do picadeiro do rio,
Um estacionamento cheio de poeiras.

No lugar do Beer Hunter que tem brio,
O acesso a uma rotunda sem beiras.
No lugar da fundição que serviu,
Doze torres em betão sem eiras.

E se foi para isso que os moradores,
Da Medrosa votaram no Isaltino,
Oh, poderoso autarca, que dás dores,

Livra-nos de ti, usa o tino,

Deixa a Medrosa aos eleitores,
Que votámos num qualquer cretino!

Carlos Santos Bueno
20/08/2008


n.b.: O autor é um poeta oeirense, com 2 livros de poesia publicados: "As Margens Vermelhas" (Minerva) e "Os Jardins do Éden" (ed. autor).
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sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Juízo Final

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JUÍZO FINAL

O rugoso globo ocular, enrugado pelo medo, encarquilhado pelo terror, o globo único que tinha, o globo apenas um que era, só, saltava, pulava, rebolava e ressaltava como doida bola de matraquilhos, num esforço danado e louco para escapar à onda avassaladora de plasma abrasador que procurava, ameaçava, tragá-lo.

Era um simples, vulgaríssimo, globo ocular, idêntico a milhares de outros.
No tamanho no volume no peso na cor ou na redondez, em plano algum se distinguia ostensiva ou evidentemente dos demais que habitavam aquelas paragens difusas.


Tinha córnea — quem não a tem?! — coberta por uma excelente conjuntiva. Tinha humor aquoso e humor vítreo — aliás, humor era coisa que não lhe faltava. Tinha uma pupila — de que gostava excepcionalmente pois fazia-o sentir-se Mestre, um misto de um Nietzsche com um Abelardo, coisa estranha... — e também uma bela íris. Tinha cristalino, claro — claro e transparente como água límpida ao brotar da nascente serrana. Tinha esclerótica, coróide e retina — eram um trio maravilha! Até fóvea tinha precisamente na mácula lútea, o que o deixava particularmente orgulhoso de si próprio.
Nervo óptico é que não tinha. Não lhe fazia falta nenhuma e seria um empecilho sempre que se quisesse deslocar. Ao rolar acabaria enrodilhado nele. Dificultar-lhe-ia a mobilidade.
Mas então o que o fazia sentir-se único? Sentir-se tão importante, como se achava?

Havia uma razão, talvez de somenos para alguns, mas para ele a Razão com maiúscula.
Era ela: Ele era um globo ocular divino. Sim, divino!
Em tempos longínquos, daqueles ditos de antanho, uma espécie quase-vivente, na verdade fora apenas e só um clã tribal, ao reparar nele enquanto dormitava à sombra dum chaparro, espojara-se à sua frente, deitara-se no chão, entoando cânticos e loas, divinizando-o.
Nada pode fazer para se opor. Assim se tornou o deus daquele clã. O Grande Deus Globo Ocular.

Durante alguns milénios teve uma vida boa e regalada.
Ele era ícone, ele era totem e estátua, ele era lugar sagrado, como o seu chaparro que ficou conhecido como Lugar da Aparição, ele eram cerimónias, liturgias, ofertórios e oferendas, sacrifícios de virgens, algumas pouco ou nada mas enfim..., era um fartar até vomitar.
Só que o que é demais enjoa, e o globo ocular agora içado ao estatuto de poderoso deus fartou-se. Aborreceu-se.
Até um Deus Globo Ocular tem limites para a paciência, bolas!

Quando o clã tribal se apercebeu que o Grande Olheco, como os miúdos lhe chamavam à sorrelfa, estava enfadado e enfastiado de tantas mordomias, ele próprio, clã, começou a definhar na medida do seu sentir de perda de razão de existir.
Menos cerimónias, menos oferendas, menos rezas, menos virgens puras e castas...
Diziam que era a crise económica. Que o pitrol não parava de subir e de dar sinal negativo à conjuntura. Mais umas quantas desgraças de costas largas.
Foi neste contexto de desânimo e desilusão global, chateado que nem um peru, que o globo ocular, agora Deus Globo Ocular, contudo fartinho de o ser, se decidiu a mandar os seus tristes adoradores ululantes às urtigas e partir para paragens mais longínquas onde tivesse paz.

Foi uma longa, dura e lenta caminhada. Cerca de 2.000 anos pela bitola terrestre. O terreno era irregular e agreste.
O pior ainda era o peso horroroso do grande malão de cartão, uma bela valise en carton oferecida pela Linda de Suza, onde transportava os seus parcos haveres. Parcos mas preciosos e indispensáveis.
No fim lá conseguiu chegar.
A um local aprazível de clima ameno, brisas claras e doces, terras macias, ondulantes, onde se podia instalar.
Apenas um senão, como logo constatou. Não havia chaparros para se deitar à sombra! Teria que encontrar um sucedâneo. Talvez nas Páginas Amarelas.

O seu primeiro dia foi passado a rolar pela planície selvagem fazendo gincana por entre plantas silvestres de bagas violáceas em busca dum bom local para construir um ninho. Não precisou de procurar muito.
No deambular rolante, cruzou-se com um grande estafermo, concretamente um político de esquerda de mentalidade fascizóide, de grande guedelha negra. Lesto saltou-lhe para o interior da espessa trunfa desgrenhada, disputando à bofetada com 3 piolhos e 2 percevejos um bom lugar junto a uma raiz dum cabelo, lugar que conseguiu sem grande esforço. Em pequenino tinha tido aulas de ballet.

Rapidamente dedicou-se à árdua tarefa de construção.
Nas redondezas buscou e apanhou algumas papas de sarrabulho e restos de cartolina Canson, com os quais fez um belo e confortável ninho (na cabeça do político esquerdista).
Tinha 3 assoalhadas, arrecadação, e um alpendre virado a poente. Era uma boa e sólida construção, magnificamente elaborada segundo técnicas milenares que lhe tinham transmitido em pequenino, capaz de suportar os mais violentos tornados e ciclones.

O tempo ia passando plácido.
Dormia sossegadamente no seu sítio, como lhe chamava em pensamento, e passeava durante todo o dia, dedicando-se a observar o mundo à sua volta, atento aos mais pequenos e pinturescos pormenores. Tinha uma curiosidade insaciável. Gostava imenso, por exemplo, de observar as auroras a mudarem de cor.
Descontraído, passeava, rebolava, dormitava — à sombra duma azinheira — até aquele dia fatal. O dia do Juízo Final!

A coisa começou cedo. Logo ao raiar do sexto sol. Sem aviso, sem anúncio.
Estava como de costume a dormitar à sombra quando se apercebeu dum ruído surdo, um ronco cavo, que parecia vir de todos os lados.
Abriu a pálpebra, estremunhado, e o que viu aterrou-o!
Uma gigantesca massa rugidora de plasma sanguinolento brilhante como mil sóis avançava na sua direcção, consumindo tudo à passagem.
Tentou rolar para longe, mas percebeu atemorizado que não tinha velocidade suficiente para escapar ao Fim do Mundo!
A massa ígnea alcançou-o e desintegrou-o reduzindo-o a nada.

O cirurgião desligou o laser, descalçou as luvas que atirou displicente para o balde dos desperdícios e deu a operação às cataratas por concluída com êxito. Podiam tirar o doente da anestesia, cujos efeitos no espírito do anestesiado só se supõem...


Oeiras, 15 Agosto 2008
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sexta-feira, 8 de agosto de 2008

a grande teta

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Glorioso e venturoso instante na vida dum caracol... atómico!


A GRANDE TETA

O caracol atómico cruza o espaço a grande velocidade!
É mais um candidato. Há muitos milénios que, de tempos a tempos, surge alguém no universo a quem o Guardião-Mor reconhece o direito de... MAMAR NA GRANDE TETA!
Mas ao caracol atómico não foi reconhecido esse direito. É um infiltrado. Segue por conta própria. Arrisca a vida. E pensa:

— GAITA! É TUDO A MAMAR, TUDO A MAMAR, E EU? NÃO TENHO DIREITO A UM BOCADINHO? AH, MAS EU CHEGO LÁ! HEI-DE MAMAR TAMBÉM!

Aproxima-se velozmente da galáxia onde está a Grande Teta. Conta com a velocidade para fintar as barreiras de protecção. Mas os radares estão cada vez mais sofisticados. Na sala de controlo, um guardião apercebe-se de um ponto violeta no écran quadriculado. Dá o alerta:

— ATENÇÃO! AÍ VEM MAIS UM QUE QUER MAMAR!

O sargento da guarda lança no espaço uma equipa de interceptores. E capturam o caracol atómico, que nada consegue fazer para o evitar. Brutalmente, conduzem-no a uma cela, onde fica detido. O guardião, antes de fechar a porta da cela, tem ainda tempo para lhe dizer:

— SERÁS LEVADO AO GUARDIÃO-MOR. É ELE QUE DITARÁ A TUA SORTE. MAS FICA JÁ A SABER QUE, ATÉ HOJE, EM TODOS OS CASOS SEMELHANTES, A SENTENÇA FOI SEMPRE ATIRAR O INFRACTOR NO CALDEIRÃO DAS MOSCAS CARNÍVORAS.

No dia seguinte, os guardiães conduzem o caracol atómico à presença do Guardião-Mor.
O ambiente é pesado. O Guardião-Mor tira o dedo do nariz, levanta o braço e aponta para o caracol atómico:

— QUE SEJAS CONDENADO AO CALDEIRÃO DAS MOSCAS CARNÍVORAS. SERÁS DESTRUÍDO AMANHÃ DE MANHÃ, QUE HOJE NÃO ME APETECE. SAÍ TODOS!

Os guardiães levam o caracol atómico de novo para a cela, onde irá aguardar o cumprimento da sentença. Faz-se noite.
O caracol atómico, na cela, não pára de pensar. Tem que conseguir escapar esta noite. O silêncio é profundo. A cela não tem janelas, apenas uma porta. O guardião passa pelo corredor de vez em quando. E o caracol põe em prática o seu plano.
Começa a bufar-se. A cela começa a encher-se do cheiro das bufas. A pouco e pouco a nuvem de gás passa pela ranhura da porta.
O caracol não pára de se bufar. O cheiro torna-se insuportável. E é detectado pelo guardião que vem a passar outra vez. Sente o pivete, imobiliza-se junto à porta, e pensa:

— UM CHEIRO TÃO FEDORENTO SÓ PODE SIGNIFICAR QUE O MALANDRO, COM O CAGAÇO, SE ESTÁ A DESFAZER EM MERDA! JÁ NÃO VAI SOBRAR NADA PARA AS MOSCAS DO CALDEIRÃO!

O guardião abre a porta. O caracol atómico, entretanto, enquanto se peidava ia preparando o ataque.
Quando o guardião abre a porta e entra na cela, o caracol surge subitamente de trás daquela (velho truque!) e desfecha-lhe uma pancada no crânio com o penico que existia na cela para os presos se aliviarem de noite.
O contacto do pesado bacio de esmalte com o crânio do guardião ressoa pela cela. O guardião tomba pesadamente no chão. O caracol aguarda em silêncio para ver se surge alguém alertado pelo barulho. Nada. Devem estar todos a dormir. Tira a arma ao guardião, as chaves, tranca a cela e esgueira-se pelo corredor.
Andando um pouco à toa, vai dar a uma plataforma onde se encontram vários veículos planadores. Uma placa identifica-os como VAGT (Veículos de Acesso à Grande Teta), exactamente aquilo que ele necessita. Entra num deles, fá-lo funcionar, e arranca a planar pelo enorme tubo à sua frente. Saí do tubo para uma imensa sala no centro da qual se encontra... A GRANDE TETA! Os olhos arregalam-se!

—CONSEGUI! — pensa o caracol.

Imobiliza o veículo e dirige-se a pé à enorme escadaria que dá acesso ao glorioso e suculento mamilo que se encontra lá em cima. À medida que se aproxima, vultos saem das sombras e acercam-se dele.
O caracol sorri. Ali, naquele sítio, aqueles vultos só podem pertencer aos grandes mamões! A pouco e pouco começa a reconhecê-los: Hitler, Mussolini, Salazar, Staline, Kadhafi, Saddam, Cerejeira, Papa, Khomeini, Hirohito... Todos abrem alas e lhe sorriem, pensando estar na presença de um sucessor.
Começa a subir a escada degrau a degrau. A grande teta, lá no alto, túrgida, clama por ele!

— VEM MEU CARACOLINHO! VEM E MAMA TAMBÉM!

Atrás do caracol, todos sobem entoando cânticos e louvores:

— MAMA, MAMINHA, NA MINHA BOQUINHA! TETA, TETONA, NA MINHA BOCONA!

O caracol continua a subir. A teta está cada vez mais perto. Mas algo de estranho se passa. A bela e exuberante teta, vista de perto, parece rugosa e flácida.
O caracol aproxima-se mais. É verdade! A Grande Teta, afinal, está velha e gasta! O mamilo sujo e desbotado, as rugas por todo o lado, o aspecto velho e encardido...
A Grande Teta está velha! constata o caracol atómico. Afinal é uma ilusão. Não vale a pena continuar. Mamar, o quê? Leite azedo, se calhar! E volta-se para descer. Dá de caras com os grandes mamões, que lhe sorriem como zombies.
Inicia a descida e tenta furar mas eles procuram impedi-lo.

— SERÁS UM DE NÓS, QUER QUEIRAS QUER NÃO QUEIRAS! HÁS-DE MAMAR, NEM QUE SEJA A ÚLTIMA COISA QUE FAZES! VAIS LEVAR COM A TETA NAS BEIÇAS!

E tentam agarrá-lo. O caracol debate-se. Grita. Empurra e esmurra em todas as direcções. Os grandes mamões caem, mas levantam-se sempre. Finalmente consegue libertar-se, não sem antes perder alguma pele pelo caminho (e um dos cornos).
Corre para o VAGT, põe-o a funcionar, e dirige-se a velocidade crescente em direcção à cúpula envidraçada da sala. Atravessa-a, no meio do troar imenso da ruptura da cúpula, e penetra no espaço, onde se liberta do VAGT e aumenta de velocidade, em direcção ao sol, em direcção à liberdade.
Atrás dele, ecoam os gritos dos grandes mamões:

— MAMAREMOS PARA SEMPRE! VIVA A MAMADA! VIVA A GRANDE TETA!

Entretanto, no posto da guarda, diz o guardião do radar:

— O MALANDRO CONSEGUIU ESCAPAR!

Responde o sargento:

— ELE QUE VÁ MAMAR P'RA OUTRO LADO!

E o caracol, feliz, lá continua em grande velocidade a cruzar o espaço:

— PORRA, JÁ ME SAFEI!


Oeiras, 09 Dezembro 2002
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Instante DOIS MIL

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O INSTANTES ultrapassou ontem a fasquia dos

2.000
visitantes

Aconteceu às 2:55:31 pm, com um clique brasileiro, a 7.170 kms daqui.
Para esse irmão desconhecido, AQUELE ABRAÇO!!

CLIQUE PARA AMPLIAR



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terça-feira, 5 de agosto de 2008

Sinalização (flag) de blogs

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Caros(as),

Este post sai substancialmente do âmbito deste espaço literário.
A razão para que tal aconteça é séria e muito grave.

Fomos alertados para ela por uma ocorrência recente que prejudicou gravosamente o blog O JUMENTO, e que vimos mencionada no Oeiras Local.

Para compreenderem melhor os contornos deste problema, que pode afectar qualquer um de nós, bloggers, o melhor é lerem e divulgarem o excelente e esclarecedor artigo do Ruben Valle Santos:


- CLIQUE NO LINK ACIMA -

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sexta-feira, 1 de agosto de 2008

fornalha

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Este instante já é velhinho... Não se trata em rigor de um conto ou estória, mas de um ensaio de poesia. Integrado, é certo, num contexto de ficção científica, apenas perceptível pelo prelúdio. Divirtam-se!


FORNALHA

Prelúdio introdutório

Sumário da 3.ª Lição de Astromorfologia - II Curso Ómega: A Fornalha.

Com voz grave e possante, dizia o professor, aos seus jovens alunos, agitando os cílios vibráteis no cocuruto da cabeça:

— NESTE NOSSO BRAÇO DA GALÁXIA, A POUCOS ANOS-LUZ DAQUI, UM CONJUNTO DE PLANETAS, ASTERÓIDES E COMETAS, ALÉM DE OUTROS CORPOS CELESTES DE SOMENOS IMPORTÂNCIA, GIRA EM TORNO DE UM SOL, ESTRELA AMARELA DO TIPO G, A QUE ALGUNS ESPECIALISTAS DÃO JOCOSAMENTE, QUIÇÁ IMBUÍDOS DE LIRISMO, A ALCUNHA DE...

FORNALHA

A fornalha rugia.
No seu íntimo,
No mais fundo do seu ser,
Nas profundezas mais vulcânicas,
O fogo revolteava,
Comprimia-se,
Expandia-se,
Esmagava-se,
Num pulsar rápido,
Caótico,
Doloroso e imparável.

A fornalha rugia.

Colunas de fogo erguiam-se,
Contorciam-se,
Projectavam-se em frente,
Chocavam umas contra as outras,
Num troar fantástico,
Destruíam-se,
E renasciam num processo infinito.

A fornalha rugia.

Fogo líquido dançava,
Bailava enlouquecido,
Deformava-se,
Lambia-se a si mesmo,
E envaginava-se num abraço final,
Recomeçando sempre.

A fornalha rugia.

Indominável.


Paço de Arcos, 29 Novembro 1994
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sexta-feira, 25 de julho de 2008

l’Huomo diroxo e Mutcha - atracções

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Este texto, aqui na sua versão original, faz parte duma estória mais vasta, da qual existem outros capítulos finalizados, e que se encontra por concluir.
O contexto é um misto de tecno-futurismo e non-sense com algumas pinceladas de fantástico e surrealismo.
Este instante é a introdução da referida estória, e foi escrito em 21 de Abril de 1993.


L'HUOMO DIROXO E MUTCHA - ATRACÇÕES

Naquela parte da cidade as ruas eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios abandonados, arquitecturas antigas, funções duvidosas.
Vapores fétidos subindo por todo o lado, saindo de buracos engradados, no pavimento pejado de poças de água oleosa por toda a parte, conspurcado de detritos industriais e restos orgânicos.

Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!
L'Huomo diroxo saltitava ao longo da rua sem passeios.
Indiferente às poças de água que existiam por todo o lado, saltitava.
Mãos nos bolsos, apito na boca, a pés juntos saltitava. A cada saltinho, uma apitadela. E assim avançava.
Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!

Entretanto, enquanto l'Huomo diroxo saltitava na inconsistência do tempo e na insolubilidade da rua esparrinhando água das poças em todas as direcções, a noite caía, escorria pelas paredes, pelos objectos que encontrava no seu caminho.
A noite caía escorrendo pelos corpos, sorvendo tudo o que encontrava.
A escuridão fechava-se em torno dele, d'el Huomo diroxo, ao mesmo tempo que alguns candeeiros — dos poucos que funcionavam — se acendiam soluçantes, enquanto perigosos smorfles ameaçavam invadir o negrume cúmplice da ausência de luz, ensaiando curtos voos, prenúncios do seu domínio das trevas.

Naquele lugar, naquela cidade, o cosmos avançava e o caos recuava.
Ao longe ouviam-se sons, sonoridades saxofónicas dolorosas e frementes, rasgando a noite como gritos de mocho, lembrando gotas de água a pingar sobre metal.

Saltitando, l'Huomo diroxo prosseguia, a pés juntos. Saltitando e apitando, saltitando e apitando...

Do outro lado da cidade, as ruas também eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios de arquitecturas abandonadas, duvidosas intenções.
Fétidos detritos orgânicos em movimento, arfantes (vivos?), alguns parados pelas esquinas, mergulhados em poças de água, reflectindo néons.
Do outro lado da cidade a noite não existia. Melhor dizendo, a noite estava de tal modo transfigurada que parecia não existir.
A ilusão era a norma. A ilusão era o ser. A ilusão era o caos. A ilusão... passar a noite em claro...

O olhar oblíquo, o cigarro ao canto da boca, a barba por fazer, as sereias no cais, o rugido dos motores das naves preparando-se para partir, a quietude do rio embalando ilusões (algumas dolorosas), mulheres do dia passeando na noite, néons estalando, doendo nos olhos, pavor do negro, da luz que se apaga por falta de corrente...
E os pingos de água caindo sobre metal. E os mochos piando na noite, ecoando nos eucaliptos da imaginação...

Aí caminhava Mutcha. Cruzando néons, desviava-se rápida e bruscamente, no seu ar de habituée, dos obstáculos que lhe surgiam pela frente. Caminhava Mutcha. Na mão, um pião.
Enquanto caminhava, descontraída, cantava mentalmente: eu tenho um pião, um pião que gira... eu tenho um pião a girar na mão; o pião, por seu turno, parecia um mocho. De madeira. Ilusão?
Rumo ao bar, com o livre-trânsito no bolso, caminhava Mutcha, de pião na mão, e mochos esvoaçando no ar, cantando mentalmente. Para si própria?
Assim prosseguia a noite que não era noite...
Mutcha prosseguia. Indiferente, afinal, àquilo que já conhecia bem.
O mocho a piar, os saxofones a tocar, o pião na mão, a canção a martelar-lhe o cérebro...

Também prosseguia, do outro lado da cidade, saltitando, l'Huomo diroxo.
Sem destino, resignado à sua condição de 'saltitão que apita'. Algures, l'Huomo diroxo saltitava. Ausente.
Foi subitamente que se apercebeu do silêncio. Parou bruscamente como se tivesse chocado contra uma parede invisível.
A sonoridade saxofónica que o acompanhara ao longo do seu deambular à deriva não se ouvia. Imobilizou-se. Completamente. A pés juntos. Apito suspenso entre os lábios. Respiração suspensa à entrada do apito.
Apurou os sentidos. Tentou ouvir... Nada! Não se ouvia nada. Nem os smorfles. Parecia que tudo tinha parado.
Então, no meio do silêncio, sem saber porquê ou como, ouviu uma canção bater-lhe no cérebro: eu tenho um pião...; um calafrio terrível percorreu-lhe o corpo amorfo.
Estremeceu. E olhou.


Olhou para o fundo escuro da rua, para as poças de água a reflectir a pouca luz dos poucos candeeiros acesos, tremeu com o frio, sentiu passar sobre si o zumbido de um smorfle, encheu-se de coragem vinda não sabia de onde nem porquê, tirou o apito da boca, colocou-o no bolso, e caminhou decididamente, inchando o peito, em direcção ao negrume, desaparecendo na escuridão dos becos.


Oeiras, 21 Abril 1993
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sexta-feira, 18 de julho de 2008

crónica dum inconfessável

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CRÓNICA DUM INCONFESSÁVEL

Quase todos os dias a via fugazmente. Ou na camioneta ou na gare da estação ou no comboio rápido saindo em Alcântara, segundo lhe tinha uma vez parecido. Eram curtos e breves momentos fugidios. Por vezes, quando esperavam a camioneta lá na rua, tinha um pouco mais de tempo para catrapiscar o olho enquanto ela se deslocava pelo passeio em direcção ao abrigo.

Achava-a interessante. Não particularmente bonita. Mas jovem e de rosto agradável. Olhos espelhando inteligência e profundidade de sentimento. Cabelo escuro quase negro cortado médio. Pequena, razoavelmente mais baixa que ele e sempre de calças e casaco escuros. A roupa pouco justa mas elegantemente vestida a deixar adivinhar, quiçá sonhar com, formas interessantes de uma mulher a amadurecer. Um dia viu-a de saia. Viu-a do joelho para baixo. Pernas a dar para magro, de musculatura bem recortada, saliente. Torneadas. Assentes sobre pés calçados com sapatos pretos de salto não muito alto. Pernas a fazerem sonhar com amores ambulatórios contra uma qualquer parede proibida, longe de vistas indiscretas. Gémeos excitantes.

Apanharam o comboio lado a lado.
Costas encostadas ao separador da carruagem, lia um livro e apoiava-se, para se equilibrar, de pernas ligeiramente afastadas e rígidas, salientando os músculos num assomo de energia imperativa e categórica. Excitou-o mais do que habitualmente. Gravou-se-lhe na memória a fogo bruto. A fogo duro. Inundou-o um delírio de fantasias evocativas de ruas molhadas pela chuva fria do outono, luzes baças pingando no alcatrão estalado e velho, néons crepitando, bocas, lábios, línguas a saberem a mel de alfazema, odores a trigo molhado, sexo túrgido contra ventre em brasa.

Poucos dias depois voltou a vê-la. Surpreendeu-o surgindo de súbito apressada quando ele saía do prédio. Dirigia-se como habitualmente no rumo do abrigo das camionetas mas, sem se deter, passou por trás deste. Talvez uma boleia. Ele apanhou a camioneta que chegava, com aquela fugaz imagem no pensamento, pensando se voltaria a vê-la. Estava no quiosque a tomar a habitual bica quando ela surgiu novamente e se dirigiu também para o quiosque. Ia tomar o seu pequeno-almoço. Olhou-a e reparou como era baixa. A testa dela dava talvez pelo queixo dele. Acabou de tomar o café e dirigiu-se para a gare de embarque. Passado pouco tempo ela passou por ele. Apanharam o mesmo rápido.
Seguiam muito perto um do outro. Pelo vidro separador ao qual ele se apoiava via-a no corredor voltada para o mar perdida em contemplação aquosa. Desta vez observou-a um pouco mais, tentando fazê-lo o mais discretamente possível.

Não soube se percebeu que a observava. Pensou que sim. As mulheres não são indiferentes a um observador solitário. Geralmente dão por isso, apesar de procurarem transmitir o contrário. Ou o mais absoluto desinteresse. Hoje não tinha um ar tão 'executivo'. Estava mais desportiva e fresca. Talvez a adivinhar os 30° previstos para Lisboa.
Tinha também as mesmas pernas. bem torneadas a provocarem-lhe os mesmos desejos inconfessáveis...

Oeiras, 12 Outubro 2002
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sexta-feira, 11 de julho de 2008

bate leve, levemente...

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BATE LEVE, LEVEMENTE...

— MAS QUE PORRA... QUE MERDA É ESTA? O QUE É ISTO?! — praguejou, piscando os olhos, vesgos de quem acaba de acordar dum sono estranho e doentio.

Olhou atónito o sítio onde se encontrava.
Torceu-se, retorceu-se como uma irós, e fez menção de se levantar, o que não conseguiu. Tinha os pulsos bem amarrados por uma corda grossa, presa ao cano do autoclismo. Estava sentado no tampo duma sanita, com as calças para baixo a prenderem-lhe as pernas, numa obscuridade que, apesar de intensa, lhe permitia perceber que estava numa minúscula casa de banho, sem janela, onde um cheiro fétido a fezes e urina se fazia sentir, entranhando-se pelas narinas sem pedir licença.
O coração acelerou e batia como um tambor. Ribombava na caixa torácica e martelava-lhe os ouvidos. Mas que raio era aquilo? Onde estava e o que fazia ali naquela situação?
A última e única coisa de que se lembrava era de caminhar calmamente pela rua na direcção de casa, do seu quarto.

Procurou fazer um flashback, recordar tudo o que tinha feito durante o dia.
Acordara por volta das 11h., com a algazarra que vinha da rua, mesmo por baixo da sua janela. O regabofe era de tal ordem, que não conseguira cair de novo no sono, e levantara-se para ir espreitar à janela a ver o que se passava, apesar de no seu íntimo ter já uma suspeita do que era.
Abrira a janela, debruçara-se e olhara para a rua, para confirmar o que sabia.
As suas vizinhas do prédio do lado, a Matilde e a Gertrudes tinham-se pegado outra vez uma com a outra, à porrada e aos gritos,
Agarradas uma à outra puxavam mutuamente os cabelos e gritavam insultos, indiferentes à pequena multidão que se tinha juntado à volta delas a gozar o prato e sem interferir, que nestas coisas é melhor deixá-las descansadas.

A história era antiga e as pegas useiras e vezeiras.
A Matilde acusava a Gertrudes de lhe andar a comer o homem, e que este a tinha emprenhado daquele aborto que ela fizera seis meses antes.
A Gertrudes defendia-se dizendo que a Matilde é que andava a abrir as pernas aos homens todos lá do bairro que toda a gente sabia que ela era uma grandessíssima putona e até na feira era com os fiscais e tudo e que nenhum dos cinco filhos dela era do marido pobre homem coitado do Mariano que era encornado e ceguinho com certeza porque não fazia nada.
Enfim, eram as tricas do costume entre vizinhas lá no bairro.
Aquelas não eram as únicas. De vez em quando lá havia alguém que se travava de razões com outro, pelos mais diversos motivos.

Aquele chinfrim tinha-lhe afugentado o sono para longe e já nada havia a fazer quanto a isso. Teria que esperar pela noite para ele voltar. O melhor era vestir-se e ir dar uma volta. Curtir um pouco.
Assim fizera. Fora à casa de banho mijar, dar o habitual traque e tirar as ramelas dos olhos, só tomava banho uma vez por mês, para poupar água dizia.
Voltara para o quarto e vestira-se. As calças de ganga e a mesma t-shirt com que andava há três dias e que mais dia menos dia teria que pôr para lavar. Como a mulher do padrasto, a Celeste, ainda não o tinha chateado a esse respeito, ia adiando.

Por falar em mulher do padrasto lembrou-se das belas coxas da gaja, e o calor inundou-lhe o baixo ventre.
A gaja, trinta e dois aninhos, era um portento. Um par de mamas que pareciam dois balões prontos a rebentar nas trombas dum mânfio, um cagueiro d'arrebenta e umas mocas boas como o milho.
Já uma vez em que ficara em casa sozinho com ela, o padrasto fora para Espanha por duas semanas trabalhar numas obras, ele tinha andado a arrastar-lhe a asa. Mas a puta dera-lhe uma grande nega.
Ele bem tentara. Falara-lhe sempre com voz meiguinha, o mais doce que conseguia por entre os dentes cariados, negros e a cair, fizera-lhe algumas festinhas na cara de vez em quando, dissera-lhe como era belo e bem cheiroso o cabelo dela, parecia um vasculho... mas um gajo tem que dizer estas coisas, deixara-a ver na televisão as telenovelas que ela queria, mais os programas do Goucha, da Fátima, da Rita e da Júlia, para se cultivar dizia ela, à conta disto para ver a bola, o seu amado Glorioso, tivera que ir para a tasca do Jeremias, até partilhara com ela uma garrafa de Gin que conseguira gamar no super do Reboredo, para a excitar andara só em cuecas ou calções pela casa, e era inverno e estava um frio de rachar, a fazer um esforço do caraças sempre que passava por ela para encher o peito de ar e encolher a barriga para lhe mostrar o caparro, as gajas gostam, sem ela topar friccionava a sarda para a pôr de pau feito por baixo das cuecas ou dos calções, e aparecia na sala com uma desculpa qualquer para ela ver que ele estava com tesão e que tinha um grande marzápio, capaz de a trespassar e fazer subir aos píncaros da Lua, mas... népias! NÉPIAS!

A cabrona da Celeste nunca cedera.
Resistira sempre aos seus avanços, sem dizer uma palavra, sem dar um sinal de que estivesse interessada numa boa queca. Certamente por temer as consequências, se o padrasto dele soubesse. Este era homem para os matar aos dois e o mais certo era ela não estar a fim de arriscar, devia ser só isso...
Ele, não tinha esse medo. Se o padrasto se armasse em parvo só por causa dum inocente par de cornos, era bem capaz de o enfrentar, enfiar-lhe umas chapadonas nas fuças para o deixar sossegado.
Também, depois de dar uma valente duma pranchada na Celeste queria lá saber do padrasto. Ele que se lixasse.

Lembrava-se bem de que se tinha vestido, que tinha passado pela cozinha, onde bebera uma cerveja fresca à maneira e comera um naco de presunto, pão e azeitonas, o seu habitual pequeno-almoço, acendera um cigarro e saíra para a rua no meu duma canícula tremenda pois o verão estava no pino.
Andara pela rua fora e a meio, lembrava-se, encontrara o Calita, que lhe devia uma cinquenta e que, encostado na soleira duma porta, tentara fazer que não o vira, assobiando para o ar, mas não conseguira evitá-lo quando ele parou e se virou mesmo à sua frente, o agarrou pelo pescoço e lhe pediu o cacau, o graveto, o pilim, os carcanhóis.

— MAN, O MEU GRAVETO?!

— PÁ, CALMA! COOL MAN! EU PAGO! NA BOA, MAN! JÁ TENHO QUASE A MASSA TODA PRA TE PAGAR. OLHA AQUI. — mostrara-lhe uma nota de vinte euros, outra de dez e duas moedas de dois euros, que ele olhara desdenhosamente.

— CAGUEI NESSA MERDA, CARALHO! DEVES CINQUENTA! SE NÃO PAGARES ATÉ AMANHÃ, JÁ SABES... TÁS FODIDO COMIGO!

Afastara-se e continuara o seu caminho, após dar um tabefe na cara do Calita, que ficou para trás a murmurar e a choramingar que lhe ia pagar tudo até ao último cêntimo, nem que tivesse que ir roubar - que era o mais certo... - que eram amigos desde putos, que era incapaz de trair um amigo que era como um irmão, que tinha a mãe doente no Francisco Xavier com um cancro na rata, que a irmã chavalinha tinha passado a noite na mata do Monsanto a trabalhar no oral e euros nicles, que o pólen que vendi ao Óscar moné inda não lhe vi a cor, que ai meu deus esta puta de vida é uma merda...

Recordava-se de ter saído do bairro para a avenida que descia em direcção à grande praça com a estátua moderna de cimento e chapa pintada às cores, na placa do meio, que ninguém percebia que merda era aquela, recordava-se de ir a caminhar pelo passeio da avenida abaixo, a fumar outra cigarrada e a apreciar as gajas que passavam apressadas, mais as estranjas descascadas.
Chegara ao largo, ainda sem saber muito bem onde se dirigir. Gostava de passear ao sabor do acaso. Até que tinha tido uma ideia que lhe iria tornar o dia mais agradável e o calor mais suportável.
Ir comprar uma ganzazita ao Pívias e ir para casa fumá-la, aproveitando pelo caminho para passar no snack do Santos e comprar meia dúzia de jecas fresquinhas para ajudar à festa.
Lembrava-se que assim fizera. Lembrava-se de se dirigir à casa do Pívias, era no prédio amarelo... mas a partir daqui as coisas tornavam-se nebulosas. Um nevoeiro denso, cerrado e escuro envolvia-o e não conseguia recordar mais nada.

— PORRA!

Tinha que fazer o ponto da situação, outra vez.
Remexeu-se no assento, suspirou e olhou em volta, semicerrando as pálpebras, atento aos pormenores.
Estava preso numa minúscula casa de banho, só com a sanita e um urinol à sua esquerda, às escuras, sem qualquer abertura, com a porta a escassos centímetros, sentado no tampo da dita sanita, com as calças em baixo, mas de cuecas.
Não lhas tinham tirado nem a t-shirt. Os pulsos estavam presos por uma corda ao cano do autoclismo, atrás de si e puxavam-o para trás. Olhou para baixo. Tinha os pés descalços mergulhados em água, cheia de mijo, beatas e pedaços de papel higiénico borrados, que inundava o chão, numa espessura de quase dois centímetros. O tecto nada tinha de assinalável, excepto por estar escamado e encardido e ter uma lâmpada apagada pendurada no suporte, sustentado por um pedaço do próprio fio eléctrico. Parecia a casa de banho duma qualquer baiuca do Cais do Sodré. O cheiro fétido, mesmo para ele, habituado a andar na merda, era insuportável, e as moscas que esvoaçavam à sua volta também o incomodavam.


Talvez fosse melhor, ao invés de tentar recordar o que fizera ao longo do dia desde que se levantara, fazer a coisa ao contrário, da frente para trás como se rebobinasse um filme ou uma cassete. Talvez assim conseguisse chegar a uma conclusão. Pelo menos a algo que o satisfizesse, que lhe desse uma ideia, mesmo que pálida, de como ali chegara. Mais tarde pensaria no que fazer para sair dali. Para se pisgar e pôr a salvo.
Concentrou-se no processo de rebobinar a película.
Acordara ali. Antes de acordar tinha estado inconsciente. Isto era óbvio. Mas... e antes disso?
Fez um tremendo esforço para se recordar da última coisa que vira, que sentira, que cheirara, que tocara, que saboreara, que estimulara os seus sentido enfim. Quase conseguia ouvir as cremalheiras do seu cérebro a rangerem do esforço.

Súbito, uma imagem surgiu. Um carapuço a ser enfiado na sua cabeça.
A partir desta imagem de forte pregnância, outras começaram lentamente a surgir do fundo lodoso da sua estilhaçada memória.
Fragmentos emergiram e foram-se juntando em pedaços maiores, formando um puzzle que crescia e que se ia tornando mais compreensível, à medida que ganhava cor e corpo, forma, estrutura.
A densidade das evocações aumentava com esforço, mas claramente.
A memória dos sentidos voltava.
Sentiu o nada sentir, o negrume, a inconsciência.
Sentiu o fugir do espírito para o vazio, o desmaio.
Sentiu de novo a forte pancada na nuca por cima do carapuço, quando este lhe tirou completamente a visão.
Viu as mãos fortes e peludas que saíam de punhos de camisas virginais e mangas de casacos negros, que o seguravam fortemente, acompanhavam no seu silêncio a mudez dos dois gigantes amarelos que saiam do carro que bruscamente travara ao seu lado.
Ouviu o carro travar e guinchar.

Agora recordava-se bem. Descia a avenida e o carro fizera uma travagem violenta ao seu lado, daquelas que deixam quilos de borracha no alcatrão. Dele tinham saído dois homens possantes de ar achinesado que, sem uma palavra, o tinham imobilizado, lhe tinham enfiado o garruço na cabeça, lhe tinham dado uma pancada na nuca. Depois, a escuridão absoluta.
Esta parte lembrava, mas e o antes?
Quem eram aqueles homens e porque carga de água o tinham prendido naquele lugar imundo?

Concentrou-se novamente nas fugazes memórias, que lhe escapavam como água por entre os dedos.
Conseguiu com esforço e tenacidade agarrar uma delas. Suspeitava que esta era um elo relevante e esforçou-se ainda mais.
Lembrou-se que enquanto caminhava pela avenida, vinha a pensar em qualquer coisa de importante. Vinha, vinha. Mas no quê?
O fotograma do filme que tentava rever bateu-lhe no espírito como se uma chapa de aço lhe tivesse caído em cima.
Estava a pensar, precisamente, que suspeitava que andava a ser seguido por agentes de... não recordava.
Recordava, sim, que eles tinham como missão eliminá-lo, um eufemismo para 'matá-lo'. Fazer-lhe a folha, mandá-lo para os anjinhos, para o jardim das tabuletas, por um motivo que ele desconhecia, disto estava seguro, por enquanto. Eles eram agentes duma potência estrangeira, tinha a certeza, e ele nunca se metera em políticas. Queriam matá-lo a propósito de quê?

Que potência era, não sabia. Mas foi rememorando a pouco e pouco o que sabia. o que lembrava. Era uma organização secreta, tão secreta que nem os próprios agentes sabiam que ela existia e que dela faziam parte.
Não tinha ideia de como ele próprio soubera da sua existência. Sempre tivera uma grande intuição para descobrir coisas a partir dos pequenos sinais que nos rodeiam, muitas vezes imperceptíveis. O que era de grande utilidade para cavar da bófia, mesmo antes dela aparecer.
Aflorou-lhe ao espírito, subitamente, o que sabia. A intenção dessa agência secreta era a clonagem de girafas para lhes extirpar os testículos e usá-los para confecção de hamburgueres através duma grande cadeia mundial de restaurantes muito conhecida, pac ou mac qualquer coisa!

Só que para levarem a deles avante era necessário eliminarem do mundo inteiro todas as pessoas que tivessem um especial carinho por girafas, para quando a coisa fosse tornada pública, como sempre acontecia, não haver oposição, manifestações e uma grande bronca de consequências incalculáveis, que poderiam pôr a frágil economia mundial em risco. Ah! Lembrava-se agora! Este era o caso dele.
Quando era carruchinho, praí com seis anos, o padrasto e a mãe, ainda era viva, tinham-no levado ao Jardim Zoológico para ver a bicharada, e o animal de que ele mais gostara fora a girafa, com aquele enorme pescaroço, as gâmbias altas e elegantes, as malhas espalhadas à ganância pelo lombo, o modo curioso de andar, ficara-lhe a atracção e o carinho para sempre. Adorava girafas!
Agora percebia. Ele era um dos que eles tinham que matar, pois claro! Ele nunca aceitaria que se fizessem hamburgueres com culhões de girafa!

Conseguira! Sabia como tinha chegado ali e o porquê!

Uma aguda dor de cabeça tinha-se entretanto instalado na sua mona. Talvez efeito do tremendo esforço de pensar para recordar. Valera a pena. Estava agora na posse de informações que o situavam naquele contexto e o ajudavam a perceber onde estava e porque estava. Era um enorme alívio.
Continuava no mesmo lugar, mas com a vantagem de já saber como ali tinha chegado, e porquê.
Esperava a todo o instante que um dos brutamontes, um dos chinas, aparecesse para lhe pôr o inevitável ponto final.
Contudo, para lá da porta, nada se ouvia. Nem um barulhinho ou um sussurro que indicasse que houvesse vivalma nas proximidades.

Decidiu, até porque se sentia terrivelmente cansado e agoniado com tudo aquilo, fechar os olhos e passar um pouco pelas brasas. Não evitaria que o matassem, mas ajudaria a passar o tempo e a suportar melhor o desconforto. Até chegar a hora.
Assim fez. Inclinou o tronco e a cabeça para trás até onde lhe foi possível. Cerrou as pálpebras, aumentando a escuridão dentro dos olhos, inspirou e expirou longa e profundamente, acalmou, sentiu que o coração batia mais regular e parava com a cavalgada anterior, o duro tambor abandonou-lhe os ouvidos e emudeceu, e ele deixou-se afundar na sonolência que sentia. Afundar-se e afogar-se.

Abriu bruscamente os olhos estremunhados, com o estampido dum escape dum motão.
À frente dos seus olhos o tecto enegrecido da humidade e sujo de cagadelas de mosca mirava-o implacável.
Soergueu o corpo sobre os cotovelos, apoiou-se nas mãos e fez força até conseguir ficar sentado, e olhou em torno de si, espantado.
Estava no seu quarto, semi-despido, descalço e esparramado na cama desfeita. Doía-lhe a cabeça e a barriga e sentia-se tonto. Tinha dificuldade em focar o olhar. Acabou por o conseguir.
Ao seu lado uma lata de cerveja tombada espalhara o conteúdo sobre o lençol.
Olhou de esguelha para o lado. Na mesa de cabeceira o chamon fitava-o vazio e desconsolado, soltando um intenso cheiro a queimado.
Atirou os braços ao ar, desengonçados, abrindo-os estupidificado e deixou-se cair para trás sobre a almofada com a súbita revelação.
Não estava preso em nenhum WC... estava no seu quarto!

Afinal sempre tinha conseguido chegar a casa do Pívias, tinha regressado a casa e ao seu quarto, não tinha sido raptado coisa nenhuma, GAITA!
Tinha bebido as jecas e tinha fumado a ganza.
Agora percebia tudo:

— PORRA, A MERDA DO AXE BATEU-ME MAL!


Oeiras, 30 Junho 2008
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sexta-feira, 4 de julho de 2008

o guardador de porcos

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O GUARDADOR DE PORCOS

O guardador de porcos da aldeia serrana de Covaxisto, conhecido nas cercanias pelo Zé Reco, correu desabrido pelas fragas, exalando o seu típico cheiro nauseabundo a chiqueiro, que sabão algum do mundo conseguiria remover, seguido a curta distância por uma nuvem cinzenta de moscas e varejeiras.
Isto nada teria de extraordinário, ele fazia-o com frequência e já ninguém se surpreendia porque o tinham na conta de maluco, não fora o facto de. naquele dia o fazer como Deus o pusera no mundo, completamente nu, com as pendurezas a abanar, e com uma galinha depenada agarrada debaixo do braço, gritando desalmado:

— AQUI D'EL REI ! AQUI D'EL REI !


— O POBRE DE CRISTO ENSANDECEU! — Exclamou o padre Luís, filho duma beata de Braga, acompanhando um rápido sinal-da-cruz e entrelaçando os dedos, como em oração, quando o sobrinho do ti Quim acorreu à sacristia em sua busca a contar-lhe o ocorrido.
Ele e os amigos tinham visto a excêntrica cena pouco antes enquanto andavam no monte a apanhar amoras, e correram todos para a aldeia a contar às famílias que o Zé Reco tinha apanhado sol na moleirinha, e lhe tinha entrado o demo no corpo.
A ele, Jaimito, o tio incumbira-o de ir dar a notícia ao senhor prior que era a pessoa mais avisada da terra, sabia latim e tudo, e saberia o que fazer.

A notícia espalhou-se pelo povoado como fogo em palha seca.
Pouco demorou para que todos os habitantes soubessem da estória e se juntassem em pequenos grupinhos, aqui e ali, a opinar e a dar sentenças.
Que o melhor era apanhá-lo, que se devia dar-lhe mas era um tiro, que o pai dele já era maluco e tinha sido apanhado a fazer porcarias com as galinhas, que era melhor falar com o Sr. prior, não isto é caso para o bispo, que a culpa era da mãe já falecida por causas nunca apuradas mas havia quem garantisse que fora o homem dela que se metia no vinho que lhe dera com uma garrafa na cabeça depois de lhe chegar a roupa ao pêlo com um varapau e depois tinha dito que ela caíra na escada de pedra de acesso ao poço velho, etc., etc.

Um deles, o compadre Gaudêncio, que tinha combatido nas áfricas, e tinha em casa numa caixa de fósforos um dente que, dizia ele, era dum turra que tinha matado à facada num combate feroz no meio do mato, e que estava na tasca do Patrício com os amigos a deixar correr o tempo à volta duma mesa com uns copos de vinhaça da boa, da adega do Américo, também presente, um valente chouriço feito pela Alice, mulher do Gaudêncio, mulher prendada como já há poucas, e uns bons nacos de pão de trigo, cozido no forno a lenha da aldeia, assim que tomou conhecimento do caso, correu a casa a buscar a caçadeira e a munir-se dum cinturão de cartuchos de chumbo grosso, que costumava usar na caça às lebres, perdizes e faisões.
Um doido à solta nas cercanias era uma boa razão para praticar tiro ao alvo e justificar à mulher a pipa de massa, a enorme despesa que fazia constantemente com a caçadeira e os cartuchos.

Outro habitante, a tia Celestina, velhota de 86 anos cristalizados num corpo franzino, seco e raquítico, enrugado e retorcido como uma oliveira milenar, correu a esconder-se ao fundo do galinheiro, com a navalha do seu saudoso Jerónimo, que se fosse vivo depressa resolveria aquela questão, como fizera uma dia ao Coentros quando com este se travou de razões por causa daquela courela que o malandro reclamava como sua e que toda a gente sabia era do Jerónimo, tinha-a recebido do pai que a tomara de herança do avô.
Ai que saudades do seu Jerónimo, que agora estava em paz e descanso numa campa no cemitério da aldeia, depois de sofrer os mil tormentos do calvário da tuberculose e duma gangrena numa perna.
Encolhida no fundo do galinheiro, a tia Celestina apertou com força o cabo negro da grande navalha que mantinha sempre bem afiada e fixou o olhar no portão do quintal, mantendo-se atenta e alerta, pronta para a temível batalha.
Um demónio preto e fedorento de olhos vermelhos raiados de sangue, à solta, com o penduralho sequioso de pecado... Nossa Senhora! Nunca se sabe do que é capaz! E Deus é testemunha de que em tais casos nem as velhas são poupadas por esses mafarricos. Ela saberia defender a sua honra!

Quanto ao Zé Reco, após ter corrido ao longo da meia encosta da colina a nascente da aldeia, sempre nos mesmos propósitos, ou despropósitos, lá se cansou e acabou por parar, desengonçado pela fadiga.
Sentou-se numa grande pedra sobranceira à aldeia, colocou a galinha no chão ao seu lado, inspirou fundo e devagar, e suspirou longamente.
Um longo suspiro.
Olhou plácido os telhados do casario lá em baixo.

Lá estava a casa do João Borrega, enteado do presidente da junta, com a horta nas traseiras cheia de enormes couves, repleta de alfaces, cenoiras, nabos, e muito mais, e ao lado a do Sebastião Bagulho, com as macieiras carregadas de belos pomos a pedirem para serem comidos.
Lá estava um pouco mais ao longe a velha ponte de pedra sobre o ribeiro seco onde já não corria água, alguns doutores da capital que às vezes arribavam à aldeia diziam que a ponte era romana ou lá o que era por causa duma porcaria dumas lajes velhas.
Ao longe os pinheiros, castanheiros, bétulas e acácias balouçavam docemente. Por sobre elas viam-se esvoaçar pardais, verdelhões, andorinhas, e demais passarada.
Na rua principal, principal porque era a única e não havia outra, corria desengonçado o Tarzan, o grande cão serra da estrela do Adérito Florido. Com certeza tinha conseguido soltar-se porque estava sempre amarrado por uma grossa corrente de ferro no quintal do Adérito.

Ante aquela conhecida e amada paisagem, cheia de boas recordações dos seus tempos de moço, sentiu uma funda tristeza, uma pesada nostalgia, invadi-lo. Um punhal aguçado cravou-se no seu coração fazendo-o sangrar.

Levantou-se lentamente, espreguiçando-se ao mesmo tempo, e soltando um sonoro traque.
Baixou-se e agarrou a galinha depenada, que continuava no mesmo lugar, imóvel, ou não estivesse morta, e colocou-a de novo sob o braço.
Impulsionou o corpo e recomeçou a desvairada corrida gritando sempre.

— AQUI D'EL REI ! AQUI D'EL REI !

Numa longa e extenuante espiral desceu o monte até desembocar na aldeia, à entrada.
Parou por breves instantes para retomar o fôlego, cuspiu para o chão a saliva grossa e seca, e reatou a corrida ao longo da rua.
Não correu nem 50 metros. Dois guardas da GNR, entretanto chamada pelo pároco, interceptaram o seu percurso e forçaram a sua paragem, metendo-se à sua frente de braços abertos.
Zé Reco obedeceu à ordem de parar. Gostava muito da Guarda, tinham fardas bem bonitas, e de qualquer forma as espingardas tinham um ar ameaçador.

Os guardas agarraram-no com força pelos braços.
O cabo tirou-lhe a galinha agarrando-a pelo pescoço, olhou-a desconsolado por não a poder comer, e atirou-a sem modos nem cerimónia para a berma. Os cães vadios e os ratos tratariam dela.
O que o acompanhava, o Laurindo, filho da tia Cremilde, olhou o Zé Reco nos olhos, olhou-o fundo nos olhos e, sem querer ver viu. Viu-lhe a alma.

Viu tudo o que o Zé Reco tinha visto lá do alto e também ele sentiu de súbito ganas de se desnudar, agarrar uma galinha, depená-la, pô-la debaixo do sovaco, e começar a correr feito louco a gritar.
Mas tinha o cabo ao seu lado... o sargento e o capitão na esquadra... Deitou fora a ideia.

Com um cobertor que tinham no jipe, obrigaram o Zé Reco a cobrir-se, enquanto este chorava baba e ranho como uma criança, acometido dum inexplicável pranto, gemendo baixinho:

— AI MÃE! AI MÃEZINHA!

Cada um deles agarrou-o por um braço torcendo-os atrás das costas dele e conduziram-o para o jipes sob o olhar dos mirones, que às portas e às janelas silenciosamente assistiam à 'operação militar'.
Empurraram-o para o banco de trás, fecharam a porta, entraram na viatura, e partiram no meio duma nuvem de poeira.

Ouviu-se o Tarzan ganir lá ao longe. No seu ganido parecia que gritava:

— AQUI D'EL REI! AQUI D'EL REI!


Oeiras, 26 JUNHO 2008
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sexta-feira, 27 de junho de 2008

o caixote de madeira

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Recriação dum instante cujo original data de 13 de Outubro de 2002.


O CAIXOTE DE MADEIRA

O caixote foi descarregado sem grande cuidado ou preocupação e arrumado a um canto onde ficou à espera que o fossem buscar. Era um caixote vulgar, de madeira, um pouco tosco sem pinturas ou etiquetas, de formato oblongo, com talvez 1,8 m. de comprimento e 70 cm. de largura por 50 cm de altura. Ninguém ali sabia quem o tinha enviado e quem era o destinatário ou o que continha. O que sabiam os que o tinham descarregado é que ele era incrivelmente pesado, como se estivesse cheio de chumbo. Tinham sido necessários oito homens robustos, dos mais fortes, para o retirar de cima da camioneta que o transportava e colocá-lo no chão no sítio onde se encontrava agora, já que o guincho que usavam para cargas e descargas estava avariado e tinham que trabalhar à força de braços.

Imóvel e silencioso estava o caixote a um canto, quando por ele passou o guarda Severino que fazia serviço de noite, conhecido no armazém pelos camaradas pelo "cornudo do Severino". O guarda Severino podia ser cornudo, o que até se percebia com a cara de cu à paisana e o ar seboso e permanente travo a cebola que ostentava, desagradável até para a própria mulher a qual achara que o vizinho do andar de cima, que por acaso até era possuidor dum Cortina vermelho, era melhor parceiro que o legítimo para o sexo oral, a julgar pelo que se ouvia comentar de quem garantia ter visto a dita com ele, ajoelhada num esconso do prédio. O importante é que o guarda Severino até podia ser cabrão, mas era um homem honesto e não tinha o hábito de mexer em nada no armazém. Fazia disso ponto de honra.

Naquela noite escura, quando passava uma ronda a altas horas, passou perto do caixote e casualmente apontou-lhe a lanterna e olhou-o. Ao olhar para ele uma brusca pressão cresceu-lhe no plexo solar e expandiu-se pelo corpo, pulsando nas têmporas, ribombando nos ouvidos. Sentiu um desejo irreprimível, irresistível de saber o que o caixote tinha dentro. Não conseguiu perceber o que lhe tinha provocado aquele desejo tão intenso. Não foi pelo aspecto do caixote que não tinha nada de estranho no meio de tantos similares, além de que, em doze anos de serviço naquele armazém, Severino tinha visto caixotes de todas as formas, cores e feitios, nunca tendo passado por uma situação daquelas. Nunca tinha sentido qualquer curiosidade em saber o que qualquer caixote, fosse qual fosse, pudesse conter, não era da sua conta, o que era uma forma de evitar tentações e problemas que lhe poderiam custar o emprego. Mas desta vez tinha acontecido.

Parecia-lhe que uma voz lhe falava ao ouvido e lhe sussurrava para abrir o caixote. Como se fazê-lo fosse uma obrigação moral, um imperativo. Estacou especado e assustado em frente ao caixote fixando-o hesitante. Da mão escorregou e caiu-lhe a lanterna que transportava e que bateu no chão de cimento com um som estridente, estilhaçando-se o vidro e apagando-se. Na súbita penumbra, Severino deu um pulo com o susto. Abanou a cabeça como para acordar. Não hesitou mais. Correu à sala das ferramentas, muniu-se de um forte pé-de-cabra e regressou rapidamente ao caixote. Introduziu a ponta do ferro numa greta no bordo da tampa e fez força, toda a força que podia. Nem acreditava no que estava a fazer. A tampa rangeu lugubremente e saltou com grande estrondo. O guarda Severino largou a ferramenta no chão, a qual provocou um sinistro ressoar metálico no silêncio do armazém, e acercou-se para mais perto do caixote para espreitar para o interior deste. Acendeu o isqueiro e, apesar da pouca luminosidade, conseguiu ter um vislumbre do que o caixote continha.

Perfeitamente arrumados, empilhados uns nos outros, centenas, talvez milhares, de pequeninos lingotes de chumbo cinzento enchiam completamente o caixote.


Oeiras, 26 Junho 2008
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