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Este texto, aqui na sua versão original, faz parte duma estória mais vasta, da qual existem outros capítulos finalizados, e que se encontra por concluir.
O contexto é um misto de tecno-futurismo e non-sense com algumas pinceladas de fantástico e surrealismo.
Este instante é a introdução da referida estória, e foi escrito em 21 de Abril de 1993.
L'HUOMO DIROXO E MUTCHA - ATRACÇÕES
Naquela parte da cidade as ruas eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios abandonados, arquitecturas antigas, funções duvidosas.
Vapores fétidos subindo por todo o lado, saindo de buracos engradados, no pavimento pejado de poças de água oleosa por toda a parte, conspurcado de detritos industriais e restos orgânicos.
Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!
L'Huomo diroxo saltitava ao longo da rua sem passeios.
Indiferente às poças de água que existiam por todo o lado, saltitava.
Mãos nos bolsos, apito na boca, a pés juntos saltitava. A cada saltinho, uma apitadela. E assim avançava.
Um saltinho... priii! Outro saltinho... priii! Ainda outro... chap!
Entretanto, enquanto l'Huomo diroxo saltitava na inconsistência do tempo e na insolubilidade da rua esparrinhando água das poças em todas as direcções, a noite caía, escorria pelas paredes, pelos objectos que encontrava no seu caminho.
A noite caía escorrendo pelos corpos, sorvendo tudo o que encontrava.
A escuridão fechava-se em torno dele, d'el Huomo diroxo, ao mesmo tempo que alguns candeeiros — dos poucos que funcionavam — se acendiam soluçantes, enquanto perigosos smorfles ameaçavam invadir o negrume cúmplice da ausência de luz, ensaiando curtos voos, prenúncios do seu domínio das trevas.
Naquele lugar, naquela cidade, o cosmos avançava e o caos recuava.
Ao longe ouviam-se sons, sonoridades saxofónicas dolorosas e frementes, rasgando a noite como gritos de mocho, lembrando gotas de água a pingar sobre metal.
Saltitando, l'Huomo diroxo prosseguia, a pés juntos. Saltitando e apitando, saltitando e apitando...
Do outro lado da cidade, as ruas também eram cinzentas e sujas.
Velhos edifícios de arquitecturas abandonadas, duvidosas intenções.
Fétidos detritos orgânicos em movimento, arfantes (vivos?), alguns parados pelas esquinas, mergulhados em poças de água, reflectindo néons.
Do outro lado da cidade a noite não existia. Melhor dizendo, a noite estava de tal modo transfigurada que parecia não existir.
A ilusão era a norma. A ilusão era o ser. A ilusão era o caos. A ilusão... passar a noite em claro...
O olhar oblíquo, o cigarro ao canto da boca, a barba por fazer, as sereias no cais, o rugido dos motores das naves preparando-se para partir, a quietude do rio embalando ilusões (algumas dolorosas), mulheres do dia passeando na noite, néons estalando, doendo nos olhos, pavor do negro, da luz que se apaga por falta de corrente...
E os pingos de água caindo sobre metal. E os mochos piando na noite, ecoando nos eucaliptos da imaginação...
Aí caminhava Mutcha. Cruzando néons, desviava-se rápida e bruscamente, no seu ar de habituée, dos obstáculos que lhe surgiam pela frente. Caminhava Mutcha. Na mão, um pião.
Enquanto caminhava, descontraída, cantava mentalmente: eu tenho um pião, um pião que gira... eu tenho um pião a girar na mão; o pião, por seu turno, parecia um mocho. De madeira. Ilusão?
Rumo ao bar, com o livre-trânsito no bolso, caminhava Mutcha, de pião na mão, e mochos esvoaçando no ar, cantando mentalmente. Para si própria?
Assim prosseguia a noite que não era noite...
Mutcha prosseguia. Indiferente, afinal, àquilo que já conhecia bem.
O mocho a piar, os saxofones a tocar, o pião na mão, a canção a martelar-lhe o cérebro...
Também prosseguia, do outro lado da cidade, saltitando, l'Huomo diroxo.
Sem destino, resignado à sua condição de 'saltitão que apita'. Algures, l'Huomo diroxo saltitava. Ausente.
Foi subitamente que se apercebeu do silêncio. Parou bruscamente como se tivesse chocado contra uma parede invisível.
A sonoridade saxofónica que o acompanhara ao longo do seu deambular à deriva não se ouvia. Imobilizou-se. Completamente. A pés juntos. Apito suspenso entre os lábios. Respiração suspensa à entrada do apito.
Apurou os sentidos. Tentou ouvir... Nada! Não se ouvia nada. Nem os smorfles. Parecia que tudo tinha parado.
Então, no meio do silêncio, sem saber porquê ou como, ouviu uma canção bater-lhe no cérebro: eu tenho um pião...; um calafrio terrível percorreu-lhe o corpo amorfo.
Estremeceu. E olhou.
Olhou para o fundo escuro da rua, para as poças de água a reflectir a pouca luz dos poucos candeeiros acesos, tremeu com o frio, sentiu passar sobre si o zumbido de um smorfle, encheu-se de coragem vinda não sabia de onde nem porquê, tirou o apito da boca, colocou-o no bolso, e caminhou decididamente, inchando o peito, em direcção ao negrume, desaparecendo na escuridão dos becos.
Oeiras, 21 Abril 1993
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