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JUÍZO FINAL
O rugoso globo ocular, enrugado pelo medo, encarquilhado pelo terror, o globo único que tinha, o globo apenas um que era, só, saltava, pulava, rebolava e ressaltava como doida bola de matraquilhos, num esforço danado e louco para escapar à onda avassaladora de plasma abrasador que procurava, ameaçava, tragá-lo.
Era um simples, vulgaríssimo, globo ocular, idêntico a milhares de outros.
No tamanho no volume no peso na cor ou na redondez, em plano algum se distinguia ostensiva ou evidentemente dos demais que habitavam aquelas paragens difusas.
Tinha córnea — quem não a tem?! — coberta por uma excelente conjuntiva. Tinha humor aquoso e humor vítreo — aliás, humor era coisa que não lhe faltava. Tinha uma pupila — de que gostava excepcionalmente pois fazia-o sentir-se Mestre, um misto de um Nietzsche com um Abelardo, coisa estranha... — e também uma bela íris. Tinha cristalino, claro — claro e transparente como água límpida ao brotar da nascente serrana. Tinha esclerótica, coróide e retina — eram um trio maravilha! Até fóvea tinha precisamente na mácula lútea, o que o deixava particularmente orgulhoso de si próprio.
Nervo óptico é que não tinha. Não lhe fazia falta nenhuma e seria um empecilho sempre que se quisesse deslocar. Ao rolar acabaria enrodilhado nele. Dificultar-lhe-ia a mobilidade.
Mas então o que o fazia sentir-se único? Sentir-se tão importante, como se achava?
Havia uma razão, talvez de somenos para alguns, mas para ele a Razão com maiúscula.
Era ela: Ele era um globo ocular divino. Sim, divino!
Em tempos longínquos, daqueles ditos de antanho, uma espécie quase-vivente, na verdade fora apenas e só um clã tribal, ao reparar nele enquanto dormitava à sombra dum chaparro, espojara-se à sua frente, deitara-se no chão, entoando cânticos e loas, divinizando-o.
Nada pode fazer para se opor. Assim se tornou o deus daquele clã. O Grande Deus Globo Ocular.
Durante alguns milénios teve uma vida boa e regalada.
Ele era ícone, ele era totem e estátua, ele era lugar sagrado, como o seu chaparro que ficou conhecido como Lugar da Aparição, ele eram cerimónias, liturgias, ofertórios e oferendas, sacrifícios de virgens, algumas pouco ou nada mas enfim..., era um fartar até vomitar.
Só que o que é demais enjoa, e o globo ocular agora içado ao estatuto de poderoso deus fartou-se. Aborreceu-se.
Até um Deus Globo Ocular tem limites para a paciência, bolas!
Quando o clã tribal se apercebeu que o Grande Olheco, como os miúdos lhe chamavam à sorrelfa, estava enfadado e enfastiado de tantas mordomias, ele próprio, clã, começou a definhar na medida do seu sentir de perda de razão de existir.
Menos cerimónias, menos oferendas, menos rezas, menos virgens puras e castas...
Diziam que era a crise económica. Que o pitrol não parava de subir e de dar sinal negativo à conjuntura. Mais umas quantas desgraças de costas largas.
Foi neste contexto de desânimo e desilusão global, chateado que nem um peru, que o globo ocular, agora Deus Globo Ocular, contudo fartinho de o ser, se decidiu a mandar os seus tristes adoradores ululantes às urtigas e partir para paragens mais longínquas onde tivesse paz.
Foi uma longa, dura e lenta caminhada. Cerca de 2.000 anos pela bitola terrestre. O terreno era irregular e agreste.
O pior ainda era o peso horroroso do grande malão de cartão, uma bela valise en carton oferecida pela Linda de Suza, onde transportava os seus parcos haveres. Parcos mas preciosos e indispensáveis.
No fim lá conseguiu chegar.
A um local aprazível de clima ameno, brisas claras e doces, terras macias, ondulantes, onde se podia instalar.
Apenas um senão, como logo constatou. Não havia chaparros para se deitar à sombra! Teria que encontrar um sucedâneo. Talvez nas Páginas Amarelas.
O seu primeiro dia foi passado a rolar pela planície selvagem fazendo gincana por entre plantas silvestres de bagas violáceas em busca dum bom local para construir um ninho. Não precisou de procurar muito.
No deambular rolante, cruzou-se com um grande estafermo, concretamente um político de esquerda de mentalidade fascizóide, de grande guedelha negra. Lesto saltou-lhe para o interior da espessa trunfa desgrenhada, disputando à bofetada com 3 piolhos e 2 percevejos um bom lugar junto a uma raiz dum cabelo, lugar que conseguiu sem grande esforço. Em pequenino tinha tido aulas de ballet.
Rapidamente dedicou-se à árdua tarefa de construção.
Nas redondezas buscou e apanhou algumas papas de sarrabulho e restos de cartolina Canson, com os quais fez um belo e confortável ninho (na cabeça do político esquerdista).
Tinha 3 assoalhadas, arrecadação, e um alpendre virado a poente. Era uma boa e sólida construção, magnificamente elaborada segundo técnicas milenares que lhe tinham transmitido em pequenino, capaz de suportar os mais violentos tornados e ciclones.
O tempo ia passando plácido.
Dormia sossegadamente no seu sítio, como lhe chamava em pensamento, e passeava durante todo o dia, dedicando-se a observar o mundo à sua volta, atento aos mais pequenos e pinturescos pormenores. Tinha uma curiosidade insaciável. Gostava imenso, por exemplo, de observar as auroras a mudarem de cor.
Descontraído, passeava, rebolava, dormitava — à sombra duma azinheira — até aquele dia fatal. O dia do Juízo Final!
A coisa começou cedo. Logo ao raiar do sexto sol. Sem aviso, sem anúncio.
Estava como de costume a dormitar à sombra quando se apercebeu dum ruído surdo, um ronco cavo, que parecia vir de todos os lados.
Abriu a pálpebra, estremunhado, e o que viu aterrou-o!
Uma gigantesca massa rugidora de plasma sanguinolento brilhante como mil sóis avançava na sua direcção, consumindo tudo à passagem.
Tentou rolar para longe, mas percebeu atemorizado que não tinha velocidade suficiente para escapar ao Fim do Mundo!
A massa ígnea alcançou-o e desintegrou-o reduzindo-o a nada.
O cirurgião desligou o laser, descalçou as luvas que atirou displicente para o balde dos desperdícios e deu a operação às cataratas por concluída com êxito. Podiam tirar o doente da anestesia, cujos efeitos no espírito do anestesiado só se supõem...
Oeiras, 15 Agosto 2008
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